um caso estranho (primeira parte)

arte | christophe jacrot
arte | christophe jacrot

 

 

ele estava atravessando um problema sério, me disse, o olhar consternado. acho que queria ganhar minha simpatia para o problema. tratava-se do seguinte: falta de sincronia entre o cérebro e a fala. como assim?, perguntei. ele disse, primeiro meu cérebro pensa e então se passa um tempo, um tempo grande demais, antes que eu consiga dizer o que minha mente pensou. essa falha no sistema, eu disse, essa eu não sei corrigir. ele olhou para as fotos de meus filhos sobre a mesa. então ergueu os olhos de novo para mim. só então disse. você é minha última esperança, doutor. preciso deixar esse problema para trás ou vou acabar me matando. não aguento mais. minha vida virou um inferno. minha mulher me deixou, meus amigos não sabem mais como lidar comigo. meu emprego está por um fio. a única vantagem, se é que isso é vantagem, é que consigo prever o que as pessoas vão pensar ou dizer na maioria das vezes, mas há limites. ele olhou para as fotos atrás de mim, na parede. minhas viagens de férias para escalar montanhas, alguns diplomas. depois me encarou novamente. por exemplo, essa pausa foi porque imaginei que o senhor fosse dizer alguma coisa, fazer algum comentário, mas me enganei, porque o senhor não disse nada. enganar-se com o que os outros vão dizer é muito comum entre os seres humanos, eu disse. ele ainda demorou um pouco, os olhos percorrendo o meu consultório, antes de dizer algo. se o senhor não der jeito no meu caso, doutor, uma coisa é certa, eu não passo da semana que vem. bati as pontas dos dedos umas contra as outras, as mãos abertas, um gesto que repetia com frequência. mas o que eu podia fazer por aquele homem? o senhor não faça nada, eu lhe disse, até que eu pense numa solução. sobretudo, nada de gestos abruptos. e depois de anotar seu telefone, embora marli o tivesse, ao preencher a ficha na sala de espera, mandei-o para casa, cancelei todas as outras consultas do dia e também mandei marli embora, então me pus a consultar livros e colegas, mas nada havia a respeito do estranho caso.

 

Publicado por

paulopaniago

digo não

Um comentário sobre “um caso estranho (primeira parte)”

deixe um comentário ou um desaforo