Dor de cabeça literária

Foto | Maia Flore
Foto | Maia Flore

 

 

“Não podia desistir dos romances, porque então só lhe restaria a vida”

Martin Amis —- A informação

 

Não adiantava bater cabeça. Por mais que gostasse de literatura, ela era um luxo muito acima de suas posses. Fez as contas, não fechavam. Os livros eram comprados e lidos, o exercício diletante era feito, dia após dia após dia, o resultado permanecia pífio. Um livro de contos, editado com recursos próprios, venda ridícula, dois romances, um deles com um pequeno prêmio estadual, e nem é bom mencionar o número de não publicados, na gaveta (de verdade: na memória virtual do computador). As contas da literatura nunca fecham. O investimento: horas e horas espremendo a cabeça diante do papel, na frente do computador, semanas, meses de leitura, correios e envelopes com originais, uma fortuna para enviar sementes ao Saara, ao deserto de Gobi das editoras, inteiramente avessas a novos autores, cujo retorno em faturamento não compensava investir naqueles desconhecidos com talento para permanecerem nessa condição. Feiras, bienais, congressos, mesas redondas, nada ajudava, aquilo era apenas o furdunço em torno do circo literário. A literatura estava em outra parte, a lidar com problemas muito mais sérios e importantes. Respeitabilidade tinha sido riscada do dicionário cultural debaixo da rubrica literatura. Muito chororô dos escritores nos cadernos culturais, um dar de ombros estoico dos editores —- não era culpa deles que o país tivesse tão poucos leitores, despachavam com um muxoxo, continuariam a investir no que dava retorno e manteriam o nariz nas alturas. Um luxo. Quando se trancou com a biblioteca de cinco mil exemplares e ateou fogo em tudo, apenas dois artigos mencionaram seu nome completo, a maioria lamentou a perda de títulos importantes e o síndico agora processa a viúva pelos danos ao patrimônio coletivo. No testamento anotou um manifesto, lido pelo advogado com tédio e má vontade explícita, diante de testemunhas estupefatas e ainda sem compreender. Não houve legado nem a quem legar, o advogado ressentiu-se de não ter sido pago —- a viúva contratou outro para lidar com o problema do condomínio, a Terra avança à razão de trinta quilômetros por segundo em torno do Sol, o Sol a trezentos quilômetros por segundo em torno do centro da Via Láctea, você aí preocupado com minúcias. Francamente.

 

Publicado por

paulopaniago

digo não

9 comentários em “Dor de cabeça literária”

  1. Eu teria dito para o personagem (sem poder de convencimento, mas enfim) que o anonimato é uma dádiva. Acho que ele que permite que um romancista exerça a verdadeira liberdade criativa, vocação do gênero literário que escolheu. Romancistas consagrados sempre têm que lidar com expectativas futuras, comparações com trabalhos anteriores etc. O Knausgård, por exemplo, vai escrever para sempre à sombra de Minha Luta. Há um peso, e não sei se ele é positivo. Não sei mesmo, mas, ah, isso varia de acordo com a trajetória literária do autor, enfim. O que eu quis dizer é que nem sempre o cara mais bem sucedido é o que tem mais liberdade para escrever o que quer. E eu ainda suspeito fortemente que somente os desaparecidos vivem, de fato, a literatura…

    “As contas da literatura nunca fecham”. A frase é ótima e diz tudo. Não fecham e nem deveriam. Se fechassem, eu sinto que gostaria menos dela. Já existem ciências exatas em número suficiente no mundo 🙂

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    1. As contas não fecham nem devem, de acordo. O apelo ao Knausgård foi sacanagem, hahaha, porque o cara realmente estourou nas paradas (merecidamente, diga-se). Mas não leve tão a sério. Note que uma das marcações (ou tags, como eles gostam de dizer) é “sátira”. logo…

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  2. Tem tempo que não deixo um comentário por aqui…Mas continuo lendo as suas postagens. Hoje, uma pausa rápida pra dizer o seguinte: Os melhores, os loucos e com menos recursos são os meus prediletos. Mas eles também não se importam ou sequer sabem que sou uma leitora fiel. Quem escolhe escrever sabe o que o espera e segue escrevendo. Quem escolhe ler se apropria e cita e reinventa a partir do que leu. Eu escrevi jogar nos dois times e no anonimato sigo com a minha liberdade.

    bjs,

    Patty

    ps: agora, tb tenho um blog. Não faço postagens com a mesma frequência que vc, mas tb resolvi colocar a “bunda exposta na janela” …hihihi…Qualquer hora, passa lá —
    http://cavernadasletras.blogspot.com.br/2014/05/tecidos-esgarcados.html

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