O crítico 3.4

Foto | Vivian Maier
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Eu estava lendo um livro desse escritor norueguês que mora na Suécia, Karl Ove Knausgård, o segundo volume de uma série intitulada Minha Luta. O romance se chama Um outro amor e há um trecho, mais para o fim, em que ele menciona uma palestra para a qual foi convidado, numa cidade em que morou durante a adolescência. Ele vai para lá e se propõe, pela primeira vez, a fazer a palestra sem consultar anotações. Está nervoso, mas pelo menos anotou os tópicos a respeito dos quais pretende falar. Então senta-se num café, folheia jornais, pensa a respeito dos dois romances sobre os quais deve falar e conclui que será melhor falar a respeito de por que tinham sido escritos, sobre o surgimento da forma antes de os romances se tornarem texto. Escrever, ele diz, é ter acesso não apenas à própria vida, mas à vida das pessoas em torno. O inferno é o mesmo para todo mundo, o céu também. Então ele diz uma coisa que me marcou muito e que, enquanto estava lendo, sublinhei com lápis para destacar e ver como usaria aquilo mais tarde, um hábito que cultivo e faz com que vários livros da minha biblioteca estejam marcados.

Partilhar a mesma língua é a experiência comum das pessoas que nasceram num mesmo país, em geral. Mas, Knausgård diz, na literatura não há como se livrar dos outros. Em seguida, ele anota o seguinte: “Pelo contrário, é a literatura que nos aproxima. Através da língua, que não pertence a nenhum de nós, e que mal podemos influenciar, e através da forma, que ninguém pode quebrar sozinho, e que, mesmo nesse caso, só adquire significado se a quebra for de imediato seguida por outros. A forma o afasta de você mesmo, cria uma certa distância até o seu próprio eu, e essa distância é a condição para a proximidade em relação aos outros”. É a literatura que nos aproxima, ele diz.

 

Publicado por

paulopaniago

digo não

2 comentários em “O crítico 3.4”

  1. Estamos em 2007. Dirijo distraído o meu automóvel quando me dou com lanchonete onde, em moleque, costumava comer bastante sanduíche. Não é possível, me digo, pensei que não existisse mais. Truc’s é o nome do comércio alimentício (est. 1980). Sem me conter, estaciono o veículo numa vaga pouco-perto-pouco-longe, entro e peço um truc’s burger — queijo, salada, carne, maionese, sete dinheiros da época, governo Luiz Inácio. A moça atrás do balcão fala que, vá lá, se eu tivesse chegado pouquinho depois, não haveria truc’s burger, na verdade, ela disse, não haveria o próprio Truc’s, já que aquele seria o último dia da loja, que fecharia por motivos particulares. Comi meu truc’s burger com estranha confusão de sentimentos: saborear aquele sanduda após tantas primaveras e não saber quando teria outra oportunidade para prová-lo novamente. Pois que é desse jeito que leio Knausgård. Como se fosse o último dia do mundo, como se fosse o último truc’s burger do pedaço.

    Post-scriptum: imensurável regozijo, descubro que Truc’s reabriu as portas em agosto de dois mil e catorze; Pistão Sul, Tagua York.

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  2. Excelente oportunidade, portanto, de relembrar os sabores de outras eras, essas madeleines cobertas de gorduras trans e outras que fazem ativar a memória dos Prousts tropicais. E parece isso mesmo o caro escritor da Noruega, um último burguer saboroso, mas não tão sofisticado quanto o francês, e no entanto muito caro para quem o lê, mais até, talvez, que o próprio Proust.

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