Atravessar corredores

Foto | André Kertész
Foto | André Kertész

 

 

Para Nelson Freire e João Moreira Salles

 

O sujeito tem que passar por um sem-número de corredores, lugares estreitos, feiosos, com encanamento exposto e a tinta descascando. Depois é preciso descer umas escadas mal iluminadas, feitas com tanto descaso, o tempo todo o pensamento se projetando para fora dali, para outros lugares, um dia de praia na infância com o sol a lhe arder nas costas e a provocar sensação agradável, um beijo longo e molhado na namorada que o excitou tanto, um grande imbróglio de lembranças, um trem de segunda classe, uma xícara branca em que o café esfriou porque não foi bebido. Nova escada, agora para subir. As entranhas muito feias desses bastidores teatrais e agora ele está ali, à boca de cena, à espera do anúncio de seu nome, para então entrar, fazer uma reverência ao distinto público, esquecer-se da memória pessoal, esquecer-se da sordidez dos bastidores e, sentando ao banco sem encosto para as costas, executar a música que não foi feita pensando nele, que é apenas mais um executante de uma longa fila que o antecede e que depois o sucederá, os sons que são dele sem serem, dele porque executados por sua mão e temperamento, uma pausa um segundo mais lenta ou rápida; não dele porque de um compositor mortos antes mesmo que nascesse. A solidão do palco agora se faz mais e mais atroz, os olhos empapuçados que podem a qualquer momento se encher de lágrimas a depender da memória e da emoção ativadas, mas ele se contém, precisa ser profissional, continuar Gluck, as tábuas do chão alaranjado, o foco de luz sobre ele, pretos o corpo do piano, algumas teclas, o fraque, em outras tonalidades o som que enche o ambiente, o encadeamento das notas e da emoção, dele e da plateia, o egoísmo do sentir, mas também o privilégio humano que isso representa. Um circuito de pianos, todos afinados antes que chegue. É um homem sempre em trânsito, precisou entender há muito tempo que estar no mundo é estar em casa, em qualquer lugar, a qualquer momento. Casa é um estado de espírito de si para si, não um lugar, nunca um lugar, a sucessão de uma infinidade de notas na memória física dos dedos, casa é uma música, uma série das melhores composições, os teatros a se sucederem, as horas e horas de ensaio, de novo e de novo, a vida uma trilha sonora de música erudita, conversas pela metade, os pianos em sucessão que fazem uma quadrilha suave, a espera, o silêncio, a concentração, um lenço para retirar o suor da testa, muitas colunas clássicas a sustentar teatros, o silêncio respeitoso da plateia, então a ruptura percussiva dos aplausos, os sorrisos dos visitantes do camarim, milhares de convites nobres, aceitos ou declinados. O concerto terminado, o próximo teatro e piano que se anunciam. Lá fora chove. Haverão outras portas a atravessar, corredores e escadas, até que se chegue à última porta, à última nota. O mundo continuará sem sentido então.

 

Publicado por

paulopaniago

digo não

2 comentários em “Atravessar corredores”

  1. Gostei do texto e também da escolha da foto. É o ateliê do Mondrian, pelo Kertész –– outro caso de precisão e harmonia, aqui do fotógrafo que captou o que importa na obra do pintor. Dá ideia também de uma disciplina rigorosa pra alcançar a simplicidade em meio ao tumulto de associações. Obrigada pelo bom intervalo!

    Curtir

    1. Pela parte que me cabe, ou seja, o texto, fico grato. E concordo com você, o Kertész captou bem o ateliê. Gosto dessas imagens límpidas, com poucos elementos, embora também me agradem as imagens borradas ou pouco nítidas. Acho que gosto mesmo é dos contrastes.

      Curtir

deixe um comentário ou um desaforo