Certas trocas

gaveta

 

 

Ele queimou todas as cartas que ela havia enviado ao longo dos anos (essa história é da época em que as pessoas enviavam cartas umas para as outras). Ele não queria mais a lembrança das palavras trocadas com juras de amor, agora que a relação havia se desgastado e estava se transformando em algo triste, envelhecido e mesmo sombrio, antes que o fim realmente se tornasse real. Ela, no entanto, não destruiu as cartas recebidas dele, porque algumas mulheres têm um tipo de apego a coisas materiais. Portanto, o que restou da história foi apenas a versão dele de todos os fatos, registradas nas cartas que ela guardou para o bem da História inclusive. Claro, há sempre conjecturas que se podem levantar em relação a como ela encarava o romance deles, mas sem grande exatidão e o potencial especulativo tem limites. Não é toda vez que a história faz justiça com as limitações com as quais é obrigada a conviver. Ele foi um escritor, além do mais, alguém para quem a destruição de cartas deveria ser sempre o componente de um crime sem redenção. Mas quem pode entender as crises do coração de maneira precisa?

 

Publicado por

paulopaniago

digo não

2 comentários em “Certas trocas”

  1. Estou há dias refletindo sobre esse texto. Acho injusto que a pessoa que cometeu o gesto de queimar as cartas, ou seja, justamente aquele que não se importava com a correspondência, seja justamente a pessoa cuja versão dos fatos tenha sido preservada. Eu sei que a condição autoral não é exatamente democrática, mas aqui o resultado me pareceu particularmente autoritário. A moça deveria ter queimado as cartas dele e escrito um diário, sei lá, pelo menos, ela teria algum tipo de consolo póstumo.

    Eu ia fazer um comentário sobre o fato do personagem que guarda as cartas ser feminino mas deixa para lá, haha.

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    1. É pior: baseado no caso real da correspondência de M. Somerset Maugham com a amante. Ele queimou as cartas, ela não. Logo, a visão dele (nada democrática, diga-se) foi a que se preservou, nas cartas enviadas a ela…

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