mirela (1)

foto | aaron feaver

 

 

mirela é um doce, mirela é minha musa, ela é tudo, meu sol, meu sal, meu sul, poesia e prosa, avanço e retrocesso, futuro, presente e passado, mirela, suspiro, todo dia.

estávamos na praia nesse dia. picolé, areia, conversas meio sem rumo. mirela é minha musa, faço por ela tudo o que ela quiser, me derreto. ó, mirela, suspiro. mas tudo por dentro, evidente. pra ela, demonstro que está tudo bem e que estou forte, resistente, falando sobre o tempo ou o próximo filme que vamos assistir. mirela não pode saber que sou completamente derretido por ela. não sonha. ela acha que gosto mais ou menos. é bom assim, saudável para nós ambos.

mas quando estou sozinho e olho para essa foto que fiz de mirela, juro, normalmente termino chorando compulsivamente. ó, mirela, ó e ó. eu, o fotógrafo da agência. ela, minha modelo de vários trabalhos. para ela, não passa disso, uma relação profissional. eu, sozinho, debulho lágrimas e outros líquidos para mirela. ó, mirela, ó e ó.

 

mirela (2)

foto | aaron feaver

 

 

quando meus amigos souberam de minha paixão veemente e silenciosa por mirela, foram contra. quer dizer, contra permanecer em silêncio. “vai lá, se declara, rapaz”, me diziam, e coisas nessa linha. não adiantava lhes explicar os motivos pelos quais eu não podia me declarar para mirela. eles não aceitavam. “não posso”, dizia, “ela é minha colega de trabalho”. retrucavam: “desde quando isso impediu alguém de amar alguém?”, e coisas nessa linha. uns românticos, é o que eles são. querem ver todos se amando, como se fosse assim, simples. não é.

no dia dessa foto, não resisti mais. estávamos lá durante a sessão, as coisas não estavam indo bem, ela estava estranha, o que de alguma forma estava atrapalhando na fotogenia. até que eu disse, “imagine que você decidiu que quer fazer uma tatuagem e seus pais não deixam. então você não pode mais aguentar a pressão e está disposta a romper com as fronteiras e ser completamente rebelde”. deu certo. não sei, podia ter dito outra coisa, a rebelião contra os professores, contra fotógrafos de agência, contra ditaduras, mas me saiu isso de tatuagem. e o fato é que mirela sempre quis fazer uma tatuagem, mas se impedia exatamente por conta da natureza do trabalho. assim que terminaram as fotos, ela veio na minha direção e me deu um beijo na boca.

ó, mirela, ó.

 

mirela (3)

 

mirela e eu éramos colegas. eu, fotógrafo, ela, modelo. várias vezes fizemos trabalhos juntos. apaixonados um pelo outro, sem nunca nos declararmos, mantendo a paixão cozida em fogo brando. mas o vulcão estava lá.

o estopim foi uma sessão de fotos em que eu disse a ela que imaginasse se rebelar contra a censura dos pais, que a impediam de fazer tatuagens. ao fim do trabalho, ela me beijou a boca. fomos demitidos. uma babaquice, já que na agência vários fotógrafos se pegam com modelos e modelos com outras modelos e com clientes da agência e a bagunça é grande. mas calhou de nosso chefe, que tem lá uma quedinha por mirela, nos ver na hora em que ela me deu o beijo. quis moralizar, sei lá, dar um recado a todos e nos usou como bodes expiatórios. mas tudo certo.

agora somos namorados, mirela tem as tatuagens que queria, meus amigos riem de orelha a orelha, o amor está no ar, como diz a canção.

 

mirela (4)

 

 

namoramos, mirela e eu, e todos na agência sabem. eu, o fotógrafo. ela, a modelo. demorou para aceitarem o corpo enfeitado de tatuagens de mirela.

mas agora, não querem saber de outra coisa.

a carreira dela, sabemos, está com os dias contados. daqui a pouco ninguém mais suportará ver as mesmas tatuagens o tempo todo. não importa. nos amamos e além de modelo, mirela quer se lançar em outra profissão.

será tatuadora.

mas o mais importante: seremos felizes, mirela e eu.

 

marta e seus animais (1)

 

 

marta sempre foi do tipo que todo mundo costuma dizer, “ela é uma pessoa difícil”. sempre que ouvia qualquer comentário nesse sentido, marta retrucava, “vou ser fácil para quê?”. às escondidas, brincávamos, imitando-a, “vou ser fácil para quem?”.

a vida em si é complicada, eu costumava dizer para marta, “para que você ainda a complica mais?”. ela me olhava com cara de quem não está entendendo aonde eu quero chegar e, para ser franco, o olhar dela me deixava por um momento sem saber para onde eu queria ir. eu era secretamente apaixonado por marta, apesar da cara de zangada que ela normalmente tinha. ou talvez por causa da cara de zangada, não sei bem. sei que sonhava em domesticar marta, apaziguá-la. achava ter o remédio para as desavenças de marta com o mundo. acreditava no poder na intervenção e estava disposto a não deixá-la em paz até que marta cedesse terreno para minha entrada. eu sabia ser persuasivo, de um modo bem mais sutil do que o aparente mau humor daquela mulher.

não foi fácil, mas dobrei marta a ponto de ela ter se transformado em minha mulher. somos casados há vinte anos, tivemos nossos altos e baixos, mas o fundamental é que temos um tipo de harmonia complexa, difícil de alcançar. é um sistema de equilíbrios: quando marta está zangada, estou bem; quando estou de mau humor, quem fica bem é marta. assim, um compensa o outro, harmonicamente. nossos desentendimentos foram provocados por ligeiros desequilíbrios no princípio do sistema, os dois queriam ficar bem humorados ou ambos gostaríamos de ficar zangados. aí não dava certo.

quando as pessoas hoje falam mal de marta e vão fazer a brincadeira, ela retruca: “só sou fácil para quim”. quim é meu apelido, joaquim, seu criado.

 

marta e seus animais (2)

ilustração | joão lauro fonte

 

 

marta é treinadora de animais. não adestradora. não leve seu cão para marta lhe ensinar boas maneiras, isso não dá certo. marta treina animais para o ringue. souza, o orangotango, era sua principal aposta. marta investiu dinheiro sério no treinamento de souza, acordava cedo para correrem juntos, contratou um sparring, a coisa ia bem, souza chegou ao título mundial, detentor do cinturão, marta feliz.

mas aí houve esse desafiante, um mirrado canguru, e a coisa degringolou. marta no princípio achava que era brincadeira ridícula o treinador de cássio, o canguru, propor aquela luta tão desigual. “parece davi e golias”, ela comparou. e não é que foi mais ou menos a mesma história? na noite da luta, cássio derrotou souza fácil, ainda no primeiro assalto. até hoje estamos tentando entender o que houve exatamente. há quem diga que a luta foi comprada, mas não acreditamos nessa versão.

marta desistiu de ser treinadora. agora, adestra cães. pode trazer o seu, se você quiser que ela lhe ensine boas maneiras.

 

marta e seus animais (3)

ilustração | colwyn thomas

 

 

desiludida com o mundo violento do boxe, marta abriu outro negócio. hoje, vem se dedicando à educação de peixes. não é fácil. ela quer ensinar os peixes a pular em argolas, dar mortais, esse tipo de coisa. mas os bichos são mais resistentes ao treinamento do que gatos. marta insiste. não adianta eu mostrar a ela estudos que dizem que a memória dos peixes é praticamente inexistente e instantânea. “dory em procurando nemo, marta, lembra?”, eu insisto, sem sucesso.

marta jura de pé junto que descobriu um jeito de contornar o problema. telepatia. ela vem tentando e sou obrigado a dizer que tem obtido algum sucesso. o avanço é lento, mas marta anda confiante, acha que está prestes a revolucionar o mundo aquático de uma vez por todas.

se não der certo, dará os peixes como alimento para os gatos e vai tentar outra coisa, talvez adestramento de felinos. marta não para, isso é certo.

 

cuba (a)

foto | david alan harvey

 

 

estávamos no malecón, aquele calçadão de frente para o mar, em havana, quando fizemos essa foto do pedrinho. ele estava com nove anos, nessa foto, falava o tempo todo em ser jornalista ou escritor, quando crescesse. iria escrever histórias sobre aquelas pessoas ali, gente lascada mas ainda assim alegre, desprovida de qualquer coisa mas ainda assim cheia de fé de que a vida vai dar certo, as coisas um dia se ajeitarão.

então levei pedrinho para conhecer o outro lado, sombrio, de havana. os prédios caindo aos pedaços, prostituição, os espertos que aplicam golpes aos estrangeiros para lhes arrancar o que puderem. porque o ser humano, desprovido de qualquer coisa, ou mesmo provido, o ser humano também tem um lado obscuro e pedrinho não podia ignorar isso. a canalhice, a sem-vergonhice, a decadência, por opção ou falta dela.

depois mergulhamos no mar. depois fomos para o aeroporto. comprei para pedrinho, aos nove anos, a trilogia suja de havana, do pedro juan gutiérrez e ele leu, disse que gostou, mas não é o tipo de livro que vai escrever, quando virar escritor. pedi a ele que um dia se lembrasse de mim, que lhe levei para cuba e a certos lugares e sugeri leituras. ele disse que sim, que talvez se lembrará.

 

roma (b)

foto | henri cartier-bresson

 

 

quando em roma, me ensinou minha tia, ao nos levar ao aeroporto. estávamos embarcando para roma, para levar pedrinho, nosso aprendiz de escritor ou jornalista, para ampliar os horizontes. queríamos lhe mostrar o coliseu, a capela sistina, algumas telas de rafael e ticiano, sobretudo os romanos: que hábitos têm, que comida comem, como se vestem ou fuçam o nariz. o romano ao natural. para a educação de pedrinho.

então o aluguel do carro e nosso primeiro passeio pelas ruas de roma. empolgado com o congestionamento romano, pedrinho desceu do carro e fez essa foto de mim, reclamando. tentei imitar à perfeição o gesto dos italianos, de sorte que quem olha a foto e não me conhece, acha mesmo que é uma foto tirada de um italiano legítimo numa cena autêntica. mas sou eu.

pedrinho disse que em seus livros não existirão personagens romanos, mas que se porventura for o caso, me incluirá em alguma obra, um brasileiro que finge ser romano em roma. só estava seguindo o conselho da minha tia.

 

tchecoslováquia (c)

foto | josef koudelka

 

 

quando fomos à tchecoslováquia com pedrinho, para que ele conhecesse um país do leste europeu, o país ainda tinha esse nome e era um só. consideramos a educação de pedrinho, que falava em ser escritor ou jornalista. e lá fomos nós, nos embrenhar naquele país repleto de consoantes, pouco chegado às vogais (parece que foram roubadas durante a noite, pelos holandeses a caminho de se instalar na holanda).

essa viagem foi mais complicada, porque decidimos levar zeus, nosso cão. apesar do nome de deus grego, ele na verdade era um pastel, mole que só, com tendências melancólicas fortíssimas. pois que zeus conhecesse um país do leste europeu, também.

numa de nossas paradas no campo, pouco antes de um piquenique, fiz essa foto. pedrinho sentado no lugar do motorista, zeus fazendo sua típica cara de zeus, ou seja, triste, triste. pensei muito o que fazia dele um cão tão tristonho e melancólico. nós o amávamos e fazíamos questão de demonstrar isso. ainda assim, nada lhe tirava a expressão sorumbática e macambúzia do rosto.

a vingança de pedrinho, ele prometeu, seria escrever uma história na qual zeus seria o protagonista, obrigado toda noite a encenar o papel principal em hamlet.

 

calor (a)

 

 

começou com um verão, sensação térmica de derretimento assolando a todos indistintamente, ares condicionados no máximo. começou com consumo excessivo de picolés de pêssego, sabor novo que a loja da esquina conseguia produzir e nos magnetizava no escritório a ponto de nos tornarmos zumbis, braços erguidos em direção à sorveteria. o dono da loja sorria, feliz com o assédio.

foi numa dessas idas à sorveteria que carlos conheceu madalena, a mulher que iria lhe transtornar os cornos. porque as mulheres têm esse poder, mas também porque têm consciência de ter o poder  (honestamente: sobretudo por saber usá-lo). madalena e carlos chegaram juntos à sorveteria, vindo de sentidos diferentes sobre a mesma calçada. ambos pediram picolé de pêssego e aquele era o último. carlos sorriu: “pode ficar com ele, se jantar comigo em troca”.

o convite, evidentemente, incluía jantar, sexo, namoro, casamento, viagens, filhos, vida partilhada. para não se estender em demasia, carlos fingiu que a oferta era só para jantar.

quando madalena sorriu de volta e ficou com o picolé, ele soube que o futuro estava traçado.

 

vento (b)

 

 

quando tempos depois da morte de madalena carlos podia ser visto segurando uma árvore nos dias de vento, a gente imaginava quando ele iria conseguir superar aquela perda.

na nossa cidade, o vento era implacável. carlos praticamente não conseguia se desgrudar da árvore, segurando-a contra o vento até que ela pudesse ter espessura suficiente para resistir sozinha.

a metáfora da árvore era perfeita para carlos: ele também precisava adquirir espessura suficiente para resistir às intempéries, aos ataques que o “vento implacável” tinha conseguido produzir em sua vida, ao matar madalena apenas três anos depois que se conheceram.

 

sangue (c)

 

 

todas as histórias de amor com final feliz são falsas.

sei que as pessoas adoram, suspiram, imaginam, fantasiam, depois podem voltar para casa, para realidades mesquinhas, com o coração bem mais leve.

de modo que tome histórias felizes. só que não consigo falsear demais. então preciso contar que todo o tempo que nós víamos carlos suspirando pelos cantos e tristonho por ter perdido sua amada madalena, algo dentro da gente se sentia melancolicamente reconfortado. explico melhor: carlos tinha perdido madalena, sua amada, e isso era triste e nos deixava melancólicos, mas ao mesmo tempo ele continuava apaixonado por ela e isso é uma bela história de amor, o que nos provocava conforto.

foi assim até que a polícia divulgou as fotos do assassinato de madalena. os investigadores nos contaram os detalhes. carlos havia descoberto que madalena o traía e tomou providências muito concretas. para disfarçar, fingia um amor sem fim, segurando-se em árvores, perdidamente apaixonado.

você deve estar pensando: mas que história incoerente é essa, se carlos assassinou madalena, todo mundo iria saber disso, não? não, se o assassinato foi cometido com um veneno muito poderoso a ponto de escapar à autópsia, ainda mais uma autópsia mal feita como ocorre em nossa cidade pequena. e novamente você: mas que incoerência é essa então de fotos de madalena assassinada? é que carlos havia feito fotos e por meio delas um especialista detectou sinais de envenenamento.

e como as fotos foram parar nas mãos de um especialista, você ainda deve estar se perguntando, como bom leitor de histórias policiais. pois parece que a culpa roía carlos e ele mesmo providenciou o envio das fotos… o ser humano não continua a te surpreender?

o sangue que você vê na foto é do próprio carlos, que em vez de ir para a prisão preferiu cometer suicídio.

 

inclinações (1)

 

 

o mundo não precisa ser reto. o mundo, aliás, não é reto. mas muitas coisas no mundo tentam ser. livros, por exemplo, são retos. páginas retas, linhas retas, palavras retas (no sentido figurado, se é que me entende).

há muita retidão no mundo. ou tentativa de se alcançar retidão. aliás, mais tentativa que sucesso, vamos combinar.

de modo que para mim era o suficiente. comecei as inclinações com esse primeiro modelo de estante. o livro continuava reto, mas algo no acesso ao livro mudava, embora ainda ficasse faltando. enfim, foi o que pude, naquele momento.

a vida nunca é como a gente imagina…

 

inclinações (2)

 

 

fiz aprimoramentos na ideia inicial de retirar do mundo a tendência humana para a retidão. meu projeto era trabalhar com os livros, num primeiro momento, e o modo como eram armazenados.

mas, certo, ainda não era tudo. eu continuava pesquisando, ideia fixa de fazer avançar as inclinações do mundo ao conceito mais circular de acesso ao conhecimento. deu nisso aí, a estante inclinada. o sucesso foi relativo. as pessoas são ainda muito apegadas a seus conceitos mais básicos de entendimento e leitura (no sentido figurado, você me entende) do mundo.

fora alguns aspirantes a desenhistas, gente com estilo, a estante não foi muito longe. mas a ideia não era mesmo fazer com que fosse. a mim me bastava lançar ao mundo o conceito, o que fiz. faltava só aplicar em outra escala. mas isso era questão de tempo. e quando conseguisse, estaria pronto para o último estágio: dobrar a retidão do livro. no sentido literal, se é que você me entende.

 

inclinações (3)

 

 

às vezes é preciso o trabalho de uma vida inteira para se chegar ao ponto. comecei dobrando estantes, inclinando o acesso ao livro. meu último projeto foi essa biblioteca, onde guardei meus livros de literatura. acho que a literatura tem essa ambição: mostrar que o mundo, por mais incompleto e torto que seja, é uma possibilidade ainda por explorar.

venho trabalhando agora no meu último projeto: fazer livros que não sejam mais retos, nem na lombada, nem nos cantos, nem no uso de linhas, nem na disposição da leitura. viemos do círculo, ao círculo voltaremos, no caso do conhecimento. portanto, livros com inclinações cada vez mais drásticas. os editores resistem. mas ando otimista: olho para as estantes inclinadas do meu passado e minha biblioteca recente e acho que tenho chances…

 

marla, a

 

 

marla na sorveteria. marla feliz com o que a vida tem lhe proporcionado: amores, sorvetes, tatuagens. hoje, ao sair de casa de manhã, ela fez um penteado que sua avó teria achado moderno nos anos 1950. o que a avó nunca teria aprovado: a escolha das tatuagens que ela tem no braço, no dorso e em algumas partes que só uns poucos caras viram (e precisamente três mulheres).

marla tem estado contente porque conheceu esse cara que trabalha no ramo dos anúncios. marla se interessa pouco pela atividade profissional do sujeito, mas gosta do jeito como ele a trata, das conversas que têm, do rumo que as coisas estão tomando. se tudo der certo, se o universo conspirar favoravelmente, hoje esse sujeito vai dar o passo que falta para que as conversas deixem de ser apenas isso, conversas.

a julgar pela felicidade dela, pela intensidade da luz e pela conspiração dos astros, o sujeito dos anúncios hoje vai conhecer a região restrita a poucos no corpo de marla e o poder secreto da língua que ela tem.

 

noel, b

 

 

noel parece uma criança, mas não é. ele tem problema no crescimento. não é o problema que faz dele um anão. é outro. ele está envelhecendo antes da hora. se passar dos 13, noel terá doenças terríveis, que só atingem as pessoas em idade muito avançada. esclerose múltipla, por exemplo. noel tem uma doença que o faz envelhecer aceleradamente, um metabolismo avassalador. para muita gente, isso seria motivo para eternas lamentações e procuras ensandecidas por alternativas médicas que pudessem retardar o processo.

noel adotou outra estratégia. vai viver tão intensamente quanto seu corpo envelhece. ei-lo aqui, numa festa à fantasia, enchendo a cara e fumando muito. parece ter oito anos, mas é como se tivesse quarenta e cinco, quarenta e oito anos, por aí. se der, além de encher a cara vai passar uma cantada na garçonete que o atende e levá-la para a cama. tem dois meses que não faz sexo com outra pessoa e se contenta com a própria mão, algo que não lhe traz exatamente o mesmo prazer. portanto, se der certo, o sexo hoje será mais interativo. na verdade, será muito bom, descontada a diferença de altura entre eles. a coisa só vai dar errado quando ela sugerir, com a maior falta de tato, que assistam em dvd ao filme o curioso caso de benjamin button.

 

judite, c

 

 

pedi a judite várias vezes, antes de convencê-la a posar para mim. queria uma foto dela assim, com o raio-x nas mãos, quando seu corpo ainda está bem, quando ainda não começou a se manifestar a doença. poderei lembrar dela quando era saudável. parece mórbido, mas não sei, de alguma forma a ideia mais grotesca seria acompanhar com fotos os momentos em que a doença tiver operado sua devastação terrível. de modo que ficamos assim, com essa ironia sublime. acho que fiz judite finalmente entender o conceito.

ela está cheia de dúvidas. acha que vou deixar de amá-la quando seu corpo começar a transparecer as marcas da doença. mal sabe ela que não apenas ficarei a seu lado o tempo todo, acompanhando-a através de todo o calvário, como mais tarde consigo me ver sozinho, chorando, no futuro, com sua foto nas mãos, ainda completamente apaixonado.

 

trapaças, 1

 

 

as coisas nunca são como parecem. cansei de ouvir isso. mas tem hora que não tem jeito, é preciso admitir o óbvio. e nesse caso, o óbvio era não achar que as coisas são como parecem. quer dizer, você deve estar pensando que falo da ilusão de ótica, não?

foi assim: meu vizinho do andar de baixo, um cara brincalhão, propôs fazer a foto. ele fingiria segurar um dos carros estacionados lá embaixo, eu clicaria com minha máquina leica. achei criativo e topei.

mas acontece que há muito tempo não suportava o bom humor do meu vizinho de baixo. não pelo humor em si, que é ótimo, e que bom que as pessoas são capazes de manifestar esse senso. o que quero dizer é que não suportava o bom humor do meu vizinho para comigo. ele ria para mim, contava-me histórias divertidas quando me encontrava no corredor, mesmo quando eu procurava fazer de tudo para evitá-lo. não pelo humor, já disse.

acontece que havia descoberto que ele estava tendo um caso com minha mulher. e aproveitava para rir da minha cara? de modo que pedi a minha mulher para fazer a foto, essa aí que você pode ver, e aproveitei a ocasião e desci até o apartamento dele e o empurrei pela janela.

essa foto minha mulher não fez.

 

espiral, 2

 

 

assim, algumas coisas na vida são feitas para girar. para fazer com que as pessoas girem em torno de si mesmas. escadas em espiral, por exemplo.

ou carrosséis. rodas-gigantes.

o arquiteto me mostrou o plano da escada em espiral que ele planejou para incluir na minha casa. mas acontece que não suporto escadas que te forçam a dar voltas em torno de si mesmo.

na real, se pudesse, evitaria inclusive passar pelo mesmo caminho todo santo dia. o mundo é tão vasto, devia ser possível percorrer a superfície dele inteira ao longo da vida, sem repetições. são as repetições que matam.

não, fique calmo, não matei o arquiteto. apenas o despedi e contratei outro.

 

careta, 3

escultura | franz xaver messerschmidt

 

 

pedi ao meu avô que ficasse quieto na hora que o escultor chegou em casa e foi moldar o rosto dele. mas vovô, você sabe como é, não consegue parar quieto. brigou com o escultor, destratou-o de maneira monumental.

meu avô foi, ele mesmo, um grande artista. cultivou a pintura, tem telas espalhadas por vários museus importantes, umas poucas galerias e as paredes de alguns felizardos. um grande pintor.

mas a idade começou a fazer o estrago. vovô está perdendo a razão, muito embora os inimigos (e ele tem vários, não se torna um grande artista sem um cartel razoável de grandes inimigos) digam que ele nunca teve muita.

o escultor acabou fazendo isso, como vingança, eu acho. mas acabou que gostamos. retrata bem como era vovô quando não gostava de alguém, e ele praticamente não gostava de todo mundo, de modo que ficou bem representativo. ficamos com a escultura.

 

tempo e emoções, a

arte | terry haggerty

 

 

o passado lhe parecia uma galáxia extinta e mesmo se existisse continuaria a se afastar em velocidade catastrófica. o futuro era um conceito que jamais chegou a entender. “faltei essa aula”, brincava, quando alguém aludia a sua ausência de previdência — não ter casa própria, nada de seguro saúde, nenhum investimento. tudo nele era excessiva e atrevidamente presente.

portanto, nunca foi alcançado pela morte, que sempre vem para aqueles que acreditam no futuro e no passado.

 

poesia e emoções, b

arte | terry haggerty

 

 

normalmente, josé não tinha a menor paciência com poesia. não lia, não entendia, não fazia o menor esforço. mas um dia deparou-se com uns versos e o primeiro deles abriu-lhe um corte profundo no entendimento, uma epifania, para usar um termo que tanto agrada a poetas.

o verso dizia: “eu sou o talho e sou a faca” e, como se vê, não foi fortuita a escolha da imagem de corte profundo no entendimento.

desse dia em diante, josé passou a ler poesia. afora esse fato, o resto da vida de josé é perfeitamente normal, a ponto de ser esquecível.

 

idade e emoções, c

arte | terry haggerty

 

 

quanto mais o tempo passa, mais as pessoas aprendem a escamotear as emoções, em vez de exibi-las. a idade gera um tipo de pudor estranho, mas inevitável.

acontece que arnaldo havia chegado ao ponto em que as barreiras cedem e qualquer coisa é motivo para descontrole, então as lágrimas lhe escorriam aos borbotões, fosse algo alegre, fosse triste, sobretudo algo que o emocionasse — e praticamente tudo tinha esse poder. “nunca estive tão bem”, ele dizia para nós, enxugando uma lágrima no canto do olho.

ficávamos estupefatos, mas também ansiosos para chegar nossa vez.

 

família (1)

 

 

ele acha que nasceu na itália, meu tio cláudio. está sempre vestindo uns ternos feitos por alfaiates italianos. os sapatos têm nomes que mal sei pronunciar. tudo na vida do tio cláudio gira em torno de uma grande aventura. ele se diverte. mas o melhor, claro, nem são os locais para onde ele me leva e aos meus primos para nos divertirmos, sem necessariamente que nossos pais fiquem sabendo: cassinos, botecos do outro lado do mundo, puteiros, ringues de luta de box, salões de sinuca. para tio cláudio, se a vida não é divertida, não vale a pena. e ele sabe se divertir.

mas o melhor é o jeito como ele fala com as pessoas. ergue as sobrancelhas, ironiza, logo todo mundo em volta está rindo. ele diz: “hein? hein? eu não disse?”, e as pessoas riem muito, porque mesmo antes, quando estavam sérias e mau humoradas, ele havia avisado de que terminariam rindo.

tio cláudio é um pândego. sabe viver. está me arrastando a mim e aos meus primos todos para o buraco. porque não seremos nada na vida, confiantes de que basta charme e sorrisos para abrir todas as portas. o que a gente não sabe é que não funciona com todo mundo, só com quem tem esse poder invisível chamado carisma. eu comecei a perceber recentemente. não sei se terá jeito. mas vou tentar.

 

família (2)

 

 

achei que devia procurar uma profissão. sei lá, estava na esbórnia, vivendo la vida loca, destrambelhado e pouco objetivo. ia começar a frequentar de novo a escola, mas então esbarrei na prima guadalupe, que tinha morado uma longa temporada no exterior. como cresceu, minha priminha lupe. ou melhor, primona. tinha se transformado numa jovem muito bela, sedutora, com sérias inclinações para se tornar femme fatale. você conhece o tipo, faz beicinho, voz dengosa, cheia de pedidos. quando você se descuida, se manda no carro de algum outro mané, a quem também vai fazer em pedacinhos.

comigo não, gavião. que não sou de cair nessa historinha. fiz lupe de gato e sapato, maltratei-a o quanto pude. eu era o homme fatale, se é que tem a versão masculina. joguei duro, não dei mole. resultado, prima lupe já estava falando em se casar comigo. as mulheres têm esse comportamento estranho: se você as maltrata, elas costumam gostar, até certo ponto. mas aí dei pinote. sou lá homem de casar? ainda mais em família. dei uns pegas na prima lupe e depois fui cuidar da vida.

mas de vez em quando a vejo e me dou conta, se lupe não fosse tão cheia de subterfúgios, que afinal ela é um mulherão… mas aí suspiro, aperto o cinto, e continuo cuidando da minha vida.

 

família (3)

foto | hedi slimane

 

 

o resto das coisas aprendi com tio roberto. ele é o especialista em fazer muxoxos, em dar de ombros, em abanar negativamente a cabeça, e se nada disso der certo, então tio roberto tem uma técnica de partir para cima do sujeito. dificilmente o oponente está à espera de ser fisicamente agredido, de modo que tio roberto tem a vantagem da surpresa. quase sempre funciona. quando não funciona, o próximo passo é aplicar a técnica do um-dois-um, que ele tentou me ensinar. o princípio da coisa eu entendi, acho que me falta um pouco de prática para pegar o jeitão completamente.

depois descobri que não é nada disso. “nós somos naturais”, disse tio roberto, referindo-se ao modo como entendemos a técnica do golpe antes mesmo ter entendido. achava a frase de tio roberto uma abstração, até o dia em que me envolvi numa briga e a coisa realmente saiu de modo natural, como se eu tivesse praticado a vida toda. meu adversário estava no chão em dois tempos e fiquei rindo, lembrando de como eu achava que ainda não estava pronto, quando tio roberto insistia que sim, estava.

mas em geral, ele prefere a técnica do muxoxo, do dar de ombros, da ironia. tio roberto me ensinou muito. a vida é divertida. a gente tem que rir, fazer rir. se não der certo, a gente tem que partir para a ação. mas no melhor dos cenários, basta rir, brincar, tirar onda com a cara dos outros e com a própria cara. depois, no fim, a gente morre e o legado serão essas pequenas táticas de viver.

 

distância e proximidade, a

foto | aaron feaver

 

 

coragem funciona assim: quando você está longe, tudo parece se resolver fácil. quando se aproxima, o medo cresce. mas não é sobre isso que pretendia falar.

havia um parque e havia entre nós aquela vontade louca de ir ao parque.

parque de diversões. nós queríamos nos divertir. as emoções da montanha russa, as voltas da roda gigante, os sustos do tobogã. achávamos que aquilo nos divertiria por uns momentos, nos tiraria do tédio de morarmos naquela cidadezinha ridícula sem nada para fazer.

e não é que nos divertimos mesmo? mas não do modo convencional. acontece que a roda gigante teve um problema e um dos compartimentos se soltou no momento em que estava lá no alto, matando as quatro pessoas que estavam dentro. quatro de meus amigos.

que tal isso, como diversão?

 

proximidade, b

foto | aaron feaver

 

 

não consigo mais frequentar parques de diversão. sempre que vejo um, me lembro dos horrores que foram os gritos de quatro de meus amigos que morreram quando um compartimento da roda gigante se soltou e eles, que estavam dentro, caíram.

foi acidente, insiste meu psicólogo, você precisa esquecer isso, superar. também acho, concordo com ele, mas não é assim tão simples.

como terapia de choque, ele me levou até um parque de diversões e fez questão que chegássemos bem perto da roda gigante. até fiz uma foto.

mas na verdade não tenho trauma. isso apenas faz parte do meu plano de manter as aparências de alguém que ficou traumatizado depois que perdeu os amigos num acidente horrível no parque de diversões. então enceno tudo, inclusive o medo de me aproximar novamente de um parque de diversões.

na verdade, fui eu quem, na noite anterior ao meu passeio com meus amigos ao parque de diversões, entrei na área do parque sem ser visto pelo segurança e afrouxei alguns parafusos do compartimento da roda gigante.

queria me divertir, mas não de um jeito convencional.

 

distância, c

foto | aaron feaver

 

 

na praia de nossa pequena e infame cidade instalaram uns balanços. como se isso fosse tornar as crianças todas muito felizes, agora que têm onde brincar. quer dizer, elas sempre tiveram a praia, isso é certo. de vez em quando, uma se afoga e nós nos divertimos durante um tempo, comentando o que aconteceu.

mas agora elas têm balanços. podem se chacoalhar para lá e para cá o dia inteiro, se quiserem. assim, não pensam em bobagens. não pensam em soltar os parafusos dos brinquedos no parque de diversão, quando algum parque vier à cidade, ou em afogar um dos amiguinhos no mar, quando estiverem sem outra coisa para fazer.

agora sim, seremos todos membros felizes de uma comunidade feliz.

 

anotações, 1

 

 

um de meus tios é matemático. ele se chama arnaldo e faz parte dessa rara espécie brasileira, raríssima, aliás, chamada homus matematicus, seres que sabem fazer cálculos complexos, boa parte deles de aplicação zero. meu tio arnaldo faz algo chamado matemática pura. é assim: o sujeito calcula, calcula, calcula, resolve um monte de problemas e tudo, mas aquilo não serve para rigorosamente nada, a não ser deixar o sujeito contente com ele mesmo e com sua capacidade de calcular. a matemática do tio arnaldo é uma espécie de punheta intelectual.

outro dia, no entanto, entrei em seu escritório e fiquei olhando algumas anotações que ele esqueceu sobre a mesa e fui surpreendido por duas coisas: uma, eu entendi o que estava sendo calculado ali, duas, o cálculo era relativo aos movimentos que arnaldo deveria fazer para conquistar o coração de uma mulher. esse tio arnaldo é uma besta, mesmo, eu concluí. acha que o caminho para um coração feminino passa por cálculos.

mas depois que olhei uma segunda vez, os cálculos até que faziam bastante sentido. se tio arnaldo patentear essa fórmula, pronto, os homens voltam a ter o controle da situação.

 

raquel, raquel, 2

 

 

tenho um tio chamado arnaldo que é apaixonado por uma mulher casada, gostosa e inteligente. além de casada, seu outro defeito é fumar. fora isso, que mulher.

ela frequenta praia. portanto, está sempre com aquela cor maravilhosa de quem usa protetor solar e depois hidratante. mas raquel é casada com um cara bonitão e, além de tudo, rico. portanto, as chances de tio arnaldo são mínimas. pensa que ele se intimida? que nada, tio arnaldo é um lutador.

claro, luta com as armas que tem. nada muito afiado, mas enfim. ele desenvolveu um método matemático, cujos pormenores não vou mencionar aqui, para lidar com todas as mulheres e em todas as situações. ela pode ser casada, frígida (nem sempre é a mesma coisa), comprometida, noiva, desinteressada, não importa. ao final do processo, pimba, ela está apaixonada pelo sujeito.

com tio arnaldo e raquel deu certo. último cartão postal que recebi dele, estavam em acapulco. então, a vida não é bela? claro que é.

 

de volta à realidade, 3

 

 

descobri entre os pertences de meu tio arnaldo uma velha foto que o mostra ao lado de vários colegas de profissão. nessa época, meu tio ainda estava às voltas com certos cálculos convencionais do campo da matemática.

um dia, ele me disse: estou fazendo uns avanços em certa área de pesquisas da matemática que vai dar o que falar. como assim, tio? você pretende ganhar um nobel?, perguntei, imaginando que ele estava ambicioso demais para um matemático nascido no brasil. mas, sei lá, vai que ele tinha mais potencial do que jamais acreditei?

não, pretendo ganhar o coração da raquel, ele disse, descaradamente. eu sabia a quem ele se referia: aquela gostosa que morava sete andares acima do dele. mas morava com o marido e parecia feliz. de modo que me assustei. como meu tio, com aquela cara de matemático, ia fazer para conquistar um mulherão que além de tudo parecia bem casada?

ah, mas eu não podia me fiar só nas aparências. parece que o marido de raquel era impotente e, para piorar, estava perdendo toda a fortuna da noite para o dia. meu tio arnaldo, por outro lado, havia acabado de receber uma enorme herança, o que o tornou subitamente um ótimo partido e automaticamente um cara bonito. (embora meu pai já tenha morrido, também fui beneficiado pela herança, mas isso é outra história.)

de modo que os cálculos matemáticos de tio arnaldo afinal eram um blefe.

me consola saber que pelo menos a vida está onde sempre esteve.

 

inundações e mudanças, a

 

 

tomás pensou em inundações. nas inundações de amargura que acometem seu coração toda vez que pensa em carla, na dedicação devotada à causa do amor perfeito que deveriam construir. mas carla foi se encantar por aquele que apareceu assim sem mais nem menos.

chegou para tomás com a cara mais simples que podia fazer e anunciou, como quem diz algo simples como vamos tomar café: estou indo embora com ele para o canadá.

mas o que tem no canadá que tanto interessa a carla? provavelmente nada. rigorosamente nada. o canadá é um grande país vazio, feito o coração de tomás.

agora, nos dias de tempestade, tomás sai para pescar. é o jeito de fazer com que as inundações externas compensem um pouco os líquidos terríveis e amargos que invadem seu coração.

 

carla no canadá, b

 

 

a vida de carla no canadá não tem sido fácil. ela é brasileira, ela era portanto uma pessoa necessariamente contente. não vou dizer feliz, isso é talvez invadir demais a privacidade de carla. mas é preciso admitir que ela tinha aquela vitalidade esfuziante que os brasileiros recebem de berço. portanto, agora que não pode mais exercitar da mesma forma sua felicidade de viver, carla vem murchando aos poucos. claro que o clima não ajuda. carla pode ser vista caminhando pelas calçadas e ruas de québec meio sem rumo, nas tardes de quinta-feira. vez em quando ela assiste um filme.

carla foi trocar um romance por outro, achando que o romance por si basta, é suficiente garantia de que todo o resto vai se ajeitar em consonância com a felicidade do amor. carla está começando a reavaliar o modo como encara o amor. tem pensado muito se tomás, o brasileiro que deixou para trocá-lo pelo sujeito canadense, se tomás a aceitaria de volta, caso ela regressasse. carla tem pensado muito a respeito desse assunto no dias em que caminha solitária pelas ruas quebequianas. entre pensar e agir, carla está indecisa se vai se precipitar novamente, de maneira tão apressada, e se arrepender mais tarde.

a história será suspensa aqui, nesse ponto. não sei ainda se carla resolveu voltar ao brasil e para tomás, se tomás vai aceitá-la ou se já tem outra, não sei de nada disso e portanto não devo dizer nada mais.

 

nem todas as histórias são felizes, c

foto | christian stoll

 

 

do alto do prédio onde mora em québec carla vê essa imagem. carros, muitos carros, se movendo para um lado e para o outro, em direção a resolver a vida, como se a vida tivesse resolução. as pessoas ocupadas demais fazendo isso e aquilo, se ocupando com profissões, trabalho, visitas, reuniões, acertos, desacertos, tudo o que as ocupe, tudo o que as mantenha em movimento, porque é preciso não ficar parado.

quando se fica parado, você pensa demais. quando pensa demais, ideias estranhas começam a aparecer e tomar conta. como diz o ditado, cabeça vazia, oficina do diabo. no caso de carla era mais que oficina, era um parque de diversões inteiro. caraminholas cada vez mais complexas.

não vou mentir para você, leitor, carla cometeu suicídio no canadá. pensava se deveria voltar ao brasil, largar o namorado canadense e tentar reatar com tomás, que havia ficado por aqui. mas antes mesmo de sondá-lo para ver se a iniciativa lhe apetecia, carla optou pela saída radical. o pior, se você quer saber, é que tomás parecia disposto a aceitá-la. não assim, fácil. teriam problemas, ele admitia, era o primeiro a admitir, muita conversa para acertar as arestas. mas teria aceitado carla.

agora, carla não tem mais vazio no coração, porque simplesmente o coração não pulsa. tomás, no entanto, está com o seu bastante árido e nem as pescarias tem ajudado a esquecer que esse mundo é duro.

 

quarta canina (1)

foto | aaron feaver

 

 

mas que nada, nosso impávido witt fingia total indiferença diante de qualquer que fosse a questão. alguém se propunha a lhe fazer uma foto? witt olhava para o lado, não queria saber de foto. alguém o convidava para brincar no quintal? witt resfolegava, parecendo chateado, virava de costas e saía trotando. havia quem ficasse enervado com a conduta.

não levou muito tempo para matar a charada. alguém tinha colocado o nome errado no cão. ele foi batizado de wittgenstein quando apareceu em casa, uma bolinha de pelo irresistível. alguém achou divertida a chance de prestar homenagem ao filósofo austríaco. chamávamos witt, para abreviar. mas desconfio que o cão ficou matutando aquele nome, ruminando ideias, conceitos, complexidades. não deu certo. aquilo o afetou.

no início, todo mundo resistiu quando propus que witt devia mudar de nome. um nome é um nome, disseram, do fundo de algum princípio que não consigo vislumbrar inteiramente. mas um dia o carnaval chegou, um bloco de rua decidiu colocar nossa rua na trajetória e, diante de casa, witt era só alegria. mudamos o nome para samba.

hoje, me orgulho de dizer que temos um cão realizado em casa.

 

quarta canina (2)

 

 

jards é meu cão intelectual. ele gosta de livros e os lê com afinco e dedicação. jards não gosta da ideia que as pessoas normalmente têm as respeitos dos cães: que são criaturas bobocas, acostumadas a amar os respectivos donos de maneira incondicional e ilimitada. jards discorda. seus argumentos são impecáveis, límpidos e, o mais importante: convincentes. por exemplo, ele costuma dizer que o que normalmente chamamos de donos é um equívoco. na verdade, ele diz, ninguém é dono de ninguém. o conceito que vocês humanos têm de posse é algo risível — e ele reforça o que está dizendo com um muxoxo. a especialidade de jards é o muxoxo.

o único problema de jards é que, com toda sua bagagem intelectual e tudo, ele não consegue pegar cadela alguma. elas não lhe dão bola, chamam-no nards, em vez de jards, uma mistura de seu nome e da expressão nerds. pobre jards, motivo de chacota. mas parece que a mídia agora resolveu fazer uma série de matérias a respeito da postura avançada de jards e, à medida que começa a ser exposto nos canais de televisão ou nos sites da internet, ele tem esperanças de que vai encontrar uma cadela à altura.

 

quarta canina (3)

 

 

astolfo é irresistível. não só porque ele faz essa cara aí de menino pidão, astolfo também tem esses olhos azuis e todo um ar de nobreza que o tornam realmente um encanto. sei que muita gente nem gosta da nobreza e torce o nariz para a pose e os rapapés da elite, mas quando um sujeito como astolfo aparece na cena e lança seu charme, modos irretocáveis e conduta absolutamente cheia de dignidade, não tem quem fique de cara amarrada. último concurso de beleza canina foi dele, só dele.

o único senão de astolfo pouca gente conhece e talvez fosse melhor manter assim, a boca pequena, mas acho impressionante demais para não comentar. astolfo é viciado em corridas de cavalos. pois é. ele até tinha uma fortuna para herdar, mas com medo de que ela fosse torrada toda no jockey club, a família me nomeou tutor e impediu o acesso de astolfo a qualquer centavo. ele até lança o charme para mim, mas comigo não funciona. venho pensando em usar parte da grana para pagar um tratamento para astolfo. quem sabe assim ele consegue largar o vício?…

 

quarta canina (4)

 

 

bacana, o lucius. bom menino, o lucius. sempre obediente, eficiência sem par.

o treino começou com jornal. todo dia, fazia ele me trazer o jornal. eu tive, claro, que começar a assinatura de um jornal. no começo lucius estraçalhava tudo. depois aprendeu. quando aprendeu, cancelei a assinatura. não vou perder tempo com essas ficções.

daí para a vida de crimes foi um pulo. agora, toda vez que vou cometer meus assaltos, todos eles a bancos, porque não gosto de roubar pessoas de bem que andam pelas ruas, levo lucius comigo. eu me divirto, ele se diverte.

bom menino, o lucius. e muito, muito eficiente.

 

salto (1)

foto | philippe halsman

 

 

então o mundo interrompe o fluxo do tempo. era simples o truque. bater uma foto no momento do salto. aprendemos todos a congelar o que não se congela. meu tio pedro foi o primeiro a saltar. ninguém pensou que ele fosse se submeter à brincadeira. tio pedro é um cara tão sério, tem certa idade, não interage tanto com a turma mais nova.

no entanto, tio pedro saltou. deve ter sido a primeira vez que eu o vi rir. imagino que em sala de aula ele não deve sorrir nunca, nunca os cantos dos lábios erguidos para qualquer aluno ou aluna. tio pedro dá aulas de física na universidade. cálculos avançados, teorias improváveis, especulações densas. mas naquela noite da foto, tio pedro sorriu. depois o vi arrastando um olho e uma asa para sofia, uma convidada da família, prima da judite, esposa do tiago, que é irmão do meu pai e do tio pedro.

sofia então, deduzimos, foi a razão de tio pedro ter aceitado saltar. mas mais importante, foi a razão de mostrar para o tio pedro que a vida é mais que cálculos no quadro-negro. o imprevisto está sempre ali, sorrateiro, esperando para dar o bote. que bom que para tio pedro foi um bote bacana. andam dizendo que ele já convidou sofia para um cinema. e a gente jura que consegue interromper o fluxo do tempo, fala sério.

 

salto (2)

foto | philippe halsman

 

 

donato sempre quis ser pintor. gatos, cadeiras, água, escrivaninhas eram seus temas principais. às vezes numa mesma tela juntava todos. donato só aceitou posar para nossa ideia de fazer fotos da família no momento do salto se pudesse reproduzir os temas pessoais na foto, como se fosse uma de suas pinturas.

foi uma das fotos mais trabalhosas de fazer. uma estrutura com fios foi montada para segurar o cavalete onde a tela se apoia. o antônio, meu primo, segurou a cadeira por uma das pernas para dar a impressão de que ela estava no ar. vários outros primos, no canto direito, foram responsáveis por jogar os gatos e a água. a coreografia teve que ser ensaiada muitas vezes e achamos, a certa altura, que não daria certo e teríamos que desistir. mas donato desiste? não, do mesmo jeito que não desiste de ser pintor. por mais que matilde insista com ele que não dá futuro.

mas, quer saber?, agora que ficou pronta acho que foi uma das melhores fotos que fizemos.

 

salto (3)

foto | philippe halsman

 

 

o mais espalhafatoso de nossa família é tiago. ao pedro chamamos de tio, mas a tiago não. por uma razão bem simples: tente pronunciar tio tiago. fica esquisito demais. portanto, embora seja nosso tio, chamamos tiago assim, pelo primeiro nome, e tudo bem.

na hora da foto para eternizar o pulo da família, tiago parecia que estava se preparando para dar um enorme mergulho num lago que existia ali diante dele. não tinha lago algum. é tudo parte da imaginação excessivamente desenvolvida de tiago, o mais novo dos irmãos. tem isso, né?, o mais novo dos irmãos é o cara que fica liberado para ser mais doido que os outros, mais destravado. se isso aqui fosse uma história de j.d. salinger, tiago seria o pervertido da família, que faz alguma maluquice e depois comete suicídio.

não vai me surpreender o dia que alguém achar um cadáver perfeitamente fatiado debaixo da cama de tiago. vê se pode, dar um salto desses. está certo que na nossa família ninguém é lá muito bom das ideias — por exemplo, propor um álbum de família em que todo mundo, até a vovó matilda, aparece dando um pulo — mas sempre tem alguém que quer se destacar além do necessário. mas agora, olhando bem, até que ficou interessante o salto tiaguino…

 

briga, a

 

 

irreconciliado permanentemente com o mundo, vaguei a esmo, achando que tinha um objetivo.

de costas para o mundo, não pensei que o mundo poderia virar as costas para mim, não do modo violento como aconteceu.

para os efeitos dessa pequena narrativa, registre-se isso: não estou arrependido das escolhas que fiz. continuo brigado com esse mundo cheio de regras, métodos e amarras.

a liberdade foi o que me perdeu, mas não teria chegado tão longe não fosse por ela.

 

no fim, b

 

 

do alto da montanha contemplei as ruínas do universo. não foi por falta de aviso que as coisas chegaram ao ponto em que chegaram. foi por excesso de teimosia, essa característica tão humana.

nas mãos, eu tinha a mala cheia de verdinhas, mas para quê? não tinha onde aproveitar o dinheiro. o mundo agora seria feito de outra coisa.

sozinho, eu virava menos que adão. duvido que deus fosse repetir a asneira de me arrancar a costela e começar de novo, segunda chamada, adão pós-apocalíptico. neca. era mais um robinson crusoe, sem redenção de encontrar um sexta-feira ou poder voltar para a civilização.

foi então que começou a chover.

eu estava na idade em que sabia controlar as emoções, mas ser o último humano no planeta era demais para mim. não pude resistir a um putaquepariu, mas para minha sorte a chuva era ácida e minha morte não apenas foi rápida como pouco dolorosa.

 

paraíso, c

 

 

do lado de cá depois da vida as coisas são parecidas. muda um pouco as cores, parece um tanto com aquelas fotos velhas. mas tem os mesmos problemas: fila, indigestão, má vontade, trabalho, chatices e chatices sem fim. acresce que é preciso cantar no coral da igreja e isso não é optativo, como acontecia quando estava vivo.

totalmente entendo aquele anjo revoltado que pediu as contas e foi fazer outra coisa, alegando, como havia dito milton, que é melhor reinar lá embaixo do que ser um servo no céu. certíssimo. o céu sucks, se me perdoam o francês. nem tenho talento para ser beato, nem muito menos para ser obediente. fiz carreira brigando contra o mundo, ora bolas, ia acabar assim, mero coitado, prestativo e servil? nem pensar. acresce que as coisas no céu são inflamáveis, de modo que comecei tudo de novo do mesmo jeito que nero terminou com roma, liquidação, queima total.

o universo está ficando cada vez mais escasso, isso é certo.

 

pedra, 1

arte | eben goff

 

 

foi então que descobriram um minério ainda mais raro que o ouro. seria natural, portanto, que substituísse o ouro como lastro para qualquer coisa nesse mundo.

mas não é bem assim: o humano gosta da ideia de permanência, muito embora saiba desde sempre que tudo gira em torno do efêmero. paradoxos que agitam, é isso. enfim, esse desvio todo para dizer que não substituíram o ouro coisa nenhuma.

o novo minério, batizado de golpa, ficou de escanteio. parece que tem uma tribo dessas que não podem mais ser chamadas de primitiva, porque não é politicamente correto, enfim, tem essa tribo primitiva na áfrica que detém as maiores jazidas.

como a golpa não substituirá o ouro, serve apenas como material para que os membros da tribo produzam as próprias joias que usam em cerimônias especiais.

 

papel, 2

arte | eben goff

 

 

provava ideias como se fosse provador de vinhos: um pouco de cada vez, apenas para sentir o sabor de fundo, sem jamais mergulhar de vez, sem tomar porre.

não posso dizer que tenha se arrependido, mas também não posso afirmar que tenha tido uma vida de verdade, e acho que isso é o pior.

a não ser por isso: quando bebia, mesmo que só um pequeno gole, alguma sinapse maluca se fazia na cabeça dele. pintava umas coisas meio estranhas, mas que o mercado considerou arte e pagou um bom dinheiro.

 

madeira, 3

arte | eben goff

 

 

o cara veio me mostrar o tipo de madeira que iria cair muito bem no chão da varanda. é uma reserva especial, ele anunciou, encontrada numa floresta asiática oriental. então me estendeu o certificado e, de fato, a coisa estava lá.

era a última floresta no planeta com aquele tipo de madeira. todas as tentativas de reproduzir a madeira em outra parte tinham fracassado. só nascia naquela região.

o mais impressionante: ninguém precisava ficar se achando o último dos mortais só porque a madeira não se reflorestava em outra parte, porque na terra de origem ela voltava a crescer muito rápido, sem necessidade de replantio. uma dessas maravilhas inexplicáveis da natureza. enfim, decidiram explorar o negócio.

uns poucos que pudessem pagar pela madeira teriam o privilégio de comprar alguns metros quadrados, com direito a reposição de material ao final do décimo ano. depois disso, um abraço. se quisesse nova compra ou manutenção, teria que pegar o fim da fila de novo. e a fila estava grande.

era como comprar arte, só que em vez de pendurar na parede, você a estica no chão.

 

insetos (1)

ilustração | dan slavinsky

 

 

do projeto inicial só posso dizer que sobrou isso, o modelo de animal que o laboratório estava produzindo, em consonância com os modelos textuais kafkianos, porque esse senhor tcheco que escrevia em alemão até onde sei era o responsável pela ideia original do produto. franz kafka. parece que se tornou um escritor até bastante conhecido.

o projeto evoluiu bem. a aplicação era evidente: o produto deveria dar conta de responder certas questões não humanas, traduzindo-as a um dentre vários modelos possíveis de idiomas disponíveis para tradução. o que queríamos era entender o sentido de ser animal, o significado dos insetos, queríamos fechar algumas gestalts, escarafunchar certos pormenores que normalmente escapavam da compreensão.

evoluiu bem até que de repente travou. quem dá sentido, quem entende, quem atribui a tudo símbolo, signo, duplos sentidos, somos os humanos. quando os insetos começaram a fazer a mesma coisa para responder às demandas do modelo tradutor, aí, com o perdão pelo uso do francês, aí fudeu tudo.