CONTÍCULOS (62) Morrer e ser esquecido

 

 

Você pode se interessar pelas pessoas o quanto quiser, realmente demonstrar que se importa com sentimentos, emoções, opiniões alheias, você pode se tornar o imperador do altruísmo e se cercar de um número crescente e considerável de amigos.

Nada disso importa ou adianta quando você tiver que virar as costas para tudo e todos e encarar — totalmente só — a morte.

Não vai adiantar dizer vivi isso e aquilo, juntei um monte de amigos e levei uma vida animada, porque é hora de liquidar a fatura.

Eles vão chorar por você, prestar homenagens, erguer estátuas, criar prêmios com seu nome, mas eventualmente vão acabar te esquecendo e a vida vai seguir e você continuará morto para sempre. Morto e esquecido.

 

 

— Paulo Paniago

 

Punição para o virtuoso

 

 

Num livro de Margaret Atwood que comecei a ler para fazer o projeto Escritores escrevem, há uma anotação interessante a respeito dos motivos dos escritores para escrever. O livro dela se chama On Writers and Writing, algo como Sobre escritores e escrita.* Na introdução, ela menciona os motivos que foi recolhendo entre escritores de várias épocas, em resposta a uma das três questões que julga que são fundamentais de se constar numa investigação dessa natureza: Para quem você escreve? Por que você escreve? De onde vem?

A compilação que ela faz se concentra apenas num aspecto, o do motivo. O mais divertido da longa lista que ela faz me parece ser o que considera a ironia de um marquês de Sade. Ela lista um motivo de alguém: Para recompensar o virtuoso e punir o culpado, antes de fazer o que chama de defesa Marquês de Sade, usada pelos irônicos, que é inverter a ordem.

Um bom motivo para escrever, de acordo com a ironia de Atwood: recompensar o culpado e punir o virtuoso.

Mas ao fim do prefácio, quando a coisa se torna mais séria, ela fala das muitas metáforas usadas pelos escritores para mencionar o ato de entrar vendado num labirinto, ou com uma lanterna num quarto escuro (essa é a explicação de Virginia Woolf: iluminar o que já existe lá dentro, veja bem).

Atwood menciona uma lembrança de ter ouvido um estudante de medicina lhe dizer há quarenta anos que é escuro dentro do corpo humano. Em seguida, ela escreve o seguinte: “Possivelmente, então, escrever tem a ver com escuridão, e um desejo ou talvez uma compulsão de penetrá-la, e, com sorte, iluminá-la, e trazer algo de volta para a luz”.

Uma boa metáfora para a literatura é vê-la como cavalo. Você o vê ao longe, na fotografia, ou projetado num filme.

Para alguns, o cavalo está próximo.

A literatura é um cavalo selvagem a correr desembestado por um campo aberto. Vê-lo ao longe pode ser bonito e ter exuberância, mas a verdade é que ele está desembestado. Você pode se concentrar no movimento, nas cores, imaginar como seria cavalgar esse cavalo.

James Joyce é o sujeito que está montado, segura a crina e se equilibra no dorso. Ele também não sabe o que é ser cavalo — mas está bem mais perto do que a maioria de nós.

 

* Há uma edição no Brasil, pela Rocco, com o título Negociando com os mortos

 

— Paulo Paniago

Dar motivos para escrever

 

Entender por que os escritores escrevem é uma tarefa difícil, talvez impossível de ser realizada. Mas ela continua a ser tentada, de maneira incessante. Sobretudo por, obviamente, escritores. Eles escrevem, por que não escrever a respeito dos próprios processos e dos que são usados pelos colegas? Eles escrevem a respeito de si mesmos e dos demais.

Talvez agora, quando os escritores parecem o mais próximo da extinção, a tarefa se torne ainda mais urgente e necessária, ou pelo menos mais exigente. Eu mesmo, embora não seja escritor nem nada, pensei em escrever a respeito do assunto e comecei a tomar notas para um livro a que chamei, pelo menos em termos de título de trabalho, Escritores escrevem. Ele seria um dos títulos de uma série de não ficção a que chamei Infinitos Literários.

Cada título deve abordar um tema específico da literatura com um viés muito próprio que vou tentar imprimir. Escrevi apenas o primeiro dos títulos até o fim, Literatura é invenção. A respeito do poder inventivo, criativo, que deve ser uma das linhas de força da literatura. Os demais ficaram pelo caminho, em forma de anotações, inclusive o livro a respeito dos motivos pelos quais os escritores escrevem.

O que me faz falta para levar a bom termo um projeto como esse é a falta de capacidade para produzir sistematização cuidadosa. Nesse momento da minha vida, estou bem mais interessado em me dedicar à ficção do que a textos de não ficção, embora seja justamente nessa categoria que entraria este texto aqui que produzo de maneira lenta e gradual e que ainda deve me tomar muitos anos pela frente, se é que não vou abandonar a ideia antes disso.

 

— Paulo Paniago 

Entre o nada e coisa alguma

 

 

Reli há pouco um trecho de Animal tropical, do escritor cubano Pedro Juan Gutiérrez, por conta de um projeto literário em que estive envolvido.

É um livro curioso, pontuado por aquela linguagem que Gutiérrez costuma usar, algo desabusada, um tanto desabrida. Num determinado trecho, ele menciona a diferença entre um escritor europeu, hipotético, está falando de maneira genérica, que escreve da perspectiva de certo cansaço e exaustão, de sedimentação que a história da Europa lhe proporcionou e a todos os demais na mesma situação.

Em seguida compara com a própria perspectiva de escritor latino-americano. Ele se encontra embebido numa cultura vertiginosa, vibrante e jovem, em comparação com a outra. “Pertenço a uma sociedade efervescente, que convulsiona, com um futuro absolutamente incerto e imprevisível”, anota Gutiérrez. Penso que está certo, inclusive a previsão de que nada se pode prever e que alcança a literatura que ele mesmo exerce, e que não me parece que sobreviverá, porque falta a ela algo além da linguagem exacerbada, despudorada, que ele utiliza. Como consequência dessa imprevisibilidade, ele continua, “minha vida é uma perpétua experimentação entre o nada e o nada”.

Isso eu considero potente e diz muito a respeito da condição de escritor latino-americano, pendurado entre o nada e coisa nenhuma, com um abismo no meio. E tudo isso, mergulhado e embebido em exuberância tropical, em efervescência convulsa.

Livro concluído (e férias)

Com a publicação da narrativa de número 80, o blog encerra as histórias que compõem o livro Subterrâneos. É chegada a hora de tirar umas férias, portanto. Diga-se de passagem, o autor está envolvido com a escrita de um romance, de modo que férias é modo de dizer um eufemismo. Mas o blog talvez volte a qualquer momento com alguma novidade. Espero que tenham gostado. Até qualquer hora. Abraços.

 

80. O grande metrô da vida

Imagem | Andrew Wyeth

 

Existe esse aspecto curioso na história das pessoas que andam de metrô. Cada uma delas tem uma narrativa pessoal interessante, viveu um momento de tensão, de alegria imensa, de terror ou tragédia, de superação, férias maravilhosas certa vez, mudança radical de profissão ou de emprego que valeria a pena mencionar e poderia servir de incentivo a diversas outras. Essas pessoas conviveram com amigos e familiares, com quem viajaram, saíram de férias, passaram bastante tempo juntas, estimulando uns aos outros com o próprio exemplo ou simplesmente com as aventuras que atravessaram em conjunto. As narrativas se multiplicam e se esparramam para todos os lados nas vidas humanas. No entanto, basta que as pessoas entrem num vagão de metrô para que fiquem quietas, para que nada partilhem umas com as outras, para que silenciem as histórias mais interessantes e mais pessoais, em vez de ficarem tagarelando a respeito delas para Deus e todo mundo, na esperança de que aquilo se multiplique. Ninguém age de modo natural no metrô, todo mundo finge ser o mais impessoal possível, tornam-se todos pequenos robôs calados que se dirigem a algum lugar programado previamente, no momento em que saíram de casa, o olhar perdido no horizonte, mergulhados todos nos próprios pensamentos, que tentam fingir para os outros que são profundos e inquietantes, de onde a cara correspondente ensaiada e agora posta em prática. Não é o rosto que apresentam no churrasco ou próximo à piscina, não é o rosto que usam para a festa, jamais aquele que colocam quando saem para dançar. É um rosto vago, um rosto de ser pensante, como se o metrô transformasse todos os passageiros instantânea e subitamente em filósofos, a resolver os principais questionamentos existenciais já dispostos. Somos todos passageiros na verdade é do grande metrô da vida, no entanto basta que estejamos ao lado de desconhecidos para nos contermos, forjarmos silêncios, maneirarmos no gestual, que fica extremamente econômico. A civilização urbana acontece ali, no metrô, no comedimento de que todos se investem de maneira instantânea. Claro que existem vândalos, claro que existem animais desembestados que depredam ou ameaçam os humanos pacíficos, mas eles em geral são exceções, e em certo sentido, ainda bem. Sinto falta, no entanto, de mais conversações, de gente que virasse para um estranho e lhe contasse um fato pessoal marcante, sinto falta de entendermos todos que o metrô poderia ser a grande sala de estar da vida agitada das metrópoles e como tal deveria ser aproveitado. A partir de hoje, parei de inventar histórias a respeito das outras pessoas. Vou passar a cumprimentá-las com um sorriso e perguntar se têm algum relato interessante para mim. Se não tiverem, eu contarei algo meu, para criar um incentivo. Vamos ver aonde isso vai nos levar.

 

79. Peso do mistério

Imagem | Andrew Wyeth

 

Estava distraído com a leitura de uma revista e mal me dei conta da singularidade da situação. Havia um sujeito parado na estação e ele ergueu uma caixa de madeira que estava depositada aos seus pés. Não sei o que foi que desviou a minha atenção da leitura, mas levantei os olhos a tempo de perceber que ele erguia a caixa e ela parecia ser bem leve, talvez estivesse vazia. Então esse fenômeno simplesmente espantoso se deu, diante das minhas vistas. À medida que o sujeito, Arnaldo, foi entrando no vagão, a caixa parecia adquirir mais e mais peso, de modo que ele foi diminuindo o tamanho dos passos e alongando os braços, enquanto o corpo se projetava para frente e pareceu que ele não ia mais dar conta de carregar a caixa. Arnaldo começou a dobrar-se sob o peso crescente do objeto, de modo que quando finalmente o depositou no piso do vagão, ele estava a poucos centímetros de contato com o solo. No entanto, senti que o vagão inteiro pareceu ceder à pressão do peso, como se tivessem colocado em seu centro uma ou duas toneladas de liga feita de cromo, cobalto, ferro, molibdênio, tungstênio e nióbio, de uma só vez. Arnaldo sentou-se imediatamente sobre a caixa e cruzou uma perna sobre a outra. Só então reparei que sobre o ombro dele havia um pequeno macaco que usava colete vermelho. Pensei: cadê o chapéu vermelho correspondente para completar o clichê? O que haveria naquela caixa, no entanto, era a pergunta realmente intrigante, no meu entender. Pude enxergar, perto da perna de apoio de Arnaldo, que havia uma letra gravada na lateral da caixa, um A maiúsculo, pintado provavelmente com o uso de estêncil. Seria a inicial do nome do sujeito, o título do show que ele iria começar ou alguma outra coisa? As radiações de mistério pareciam emanar daquele cara com cada vez mais frequência. E o que diabos fazia aquele macaco sobre seu ombro? Seria parte do show? Fiquei esperando que ele tirasse um realejo de dentro da caixa, puxasse a perna retrátil da máquina e pusesse a manivela para girar, iniciando a música que sempre me remetia às cenas em sépia dos filmes. Devo ter visto um realejo em minha vida apenas duas ou três vezes e em todas elas me lembrei do meu avô, que numa das poucas vezes que encontrou folga em seus negócios para conversar com aquele neto introspectivo que fui, me falou da felicidade que ele sentia todas as vezes em que pôde ouvir um realejo. Mas Arnaldo simplesmente permaneceu sentado, sem apresentar indícios de que pretendia abrir a caixa e compartilhar conosco o conteúdo. Minha estação se aproximou e vi que o sujeito também se preparava para descer, mas observei, por cima dos ombros ao olhar para trás, que ele tentava puxar a caixa para fora do vagão. Ela nem se movia. Aquilo me causou uma enorme sensação de angústia e quando pensei eu vou voltar para ajudá-lo, soou o apito e as portas se fecharam. Então o trem se foi.

 

78. Na falta de remédio, o choro

Imagem | Andrew Wyeth

 

Cinco anos de idade e uma lista escassa de preocupações, Fernando observa com curiosidade a conversa de sua gloriosa mãe com Helena, vizinha de bairro e de assento no metrô. Fernando está distraído, olha os demais passageiros, ensaia pequenas corridas até o fim do vagão e depois volta para a base. A conversa da mãe, Marlene, gira sobre os assuntos de sempre: displicência do marido, chatices da sogra, preço dos alimentos, bandalheira do governo, a vida que embora ande um tanto conturbada vai-se levando, porque não tem outro jeito. Helena concorda e também desfia o próprio rosário de lamentações. De repente, como se um estalo lhe abrisse as portas do futuro, Fernando se dá conta. Mãe, ele diz, a gente está indo para a escolinha? É, meu filho, Marlene admite, imaginando que isso será tudo e poderá a voltar para a delícia que são as lamentações com amigos. Fernando abre a boca e começa um choro sofrido de quem foi traído profundamente e agora está sendo arrastado para o matadouro. Quando saía de casa, ninguém lhe disse que aquele era o destino. Agora que subitamente se deu conta, o desespero o invade como alienígena, embora o choro seja seco como o sertão. Marlene pede silêncio, mas até o fim da jornada Fernando desempenhará o papel de vilão, chorando alto pela alta traição que lhe foi imposta. Enfim, chega a estação em que descem e coincide de ser a minha. Os cabelos penteados pelos cuidados da mãe agora são maçaroca. Observo que a cinco passos de distância mais à frente caminha uma menina, Raíssa, de mãos dadas com a mãe (dela). Raíssa lança olhares furiosos para trás na direção de Fernando, também não está satisfeita com aquele espetáculo que ele nos infligiu a todos. No seu olhar consigo ler a advertência, como se ela dissesse: para com isso, garoto, quem você acha que engana com esse seu choro estridente? Que escândalo bobo. Penso comigo que a lógica do mundo é incompreensível, as mulheres são tão mais maduras desde muito cedo. Talvez se dirijam a mesma escola, aqueles dois. Raíssa compreende certas coisas que Fernando talvez jamais perceberá. O mundo é injusto e desigual e se não bastasse é preciso compreender justamente a natureza dessas desigualdades e diferenças, sob risco de prolongar inesgotavelmente meu sofrimento, muito parecido com o de Fernando.

 

77. Fotografia anônima

Imagem | Andrew Wyeth

 

Achei realmente despojado da parte daquele sujeito. Ele entrou no vagão e ficou olhando para duas moças lindas que estava conversando uma com a outra. Carmem, a da esquerda, cabelos loiros e cacheados, é designer numa firma que começou junto com amigos, assim que se formaram. Ela é responsável por fazer atendimento aos clientes e depois desenvolver os conceitos dos produtos solicitados, seja um menu para restaurante, cardápio da lanchonete, ou toda série de diferentes anúncios para diferentes mídias, impressa e digital. Numa dessas, conheceu Luísa, a morena de lábios grossos e pele muito branca, confeiteira de um café que vem fazendo muito sucesso na cidade. Luísa queria divulgar um pouco o café e procurou a firma de Carmem. As duas tiveram uma longa conversa profissional, mas repararam que as afinidades se estendiam também a outros campos e não tiveram dúvida em prolongar a relação, que além de profissional envolve amizade e, uma única vez, incluiu as bocas e corpos de ambas, para tristeza de Carmem, que adoraria ter ficado mais tempo e mais vezes na suave e intensa companhia íntima de Luísa, que pelo menos teve a sensatez de não jogar pelo ralo a amizade. Estão indo juntas à pedicure, marcaram hora no salão. Então o sujeito, Caio, que é fotógrafo, não pôde ignorar a beleza das duas, ampliada pelo fato de estarem juntas. Então Caio se levantou, levando a alça da sacola com equipamentos ao ombro, se dirigiu até onde elas estavam, trocou meia dúzia de palavras com elas, que começaram a sorrir. Ele retirou uma câmera da sacola e a ergueu diante do rosto. As duas aproximaram o rosto uma da outra e fizeram biquinho, como se estivessem mandando um beijo para a posteridade. Agradeci em silêncio por aquele momento de revelação e pela ousadia do fotógrafo. Ele ainda fez um número considerável de fotos das duas, que pareciam se divertir nos dois minutos de modelos fotográficos que lhes foram concedidos. Então a sessão foi interrompida e o mundo parece ter voltado ao normal, mas para mim, enquanto me for permitido manter a memória daquele momento, o normal sempre será um conceito estranho.

 

76. Nunca se viu o bastante

Imagem | Andrew Wyeth

 

No momento em que atingi a plataforma, saindo da escada-rolante, olhei para a frente. Havia um grupo de três mulheres logo a minha direita e, mais a frente, dois caras que mantinham conversa. Entre eles, um vazio composto apenas de chão e, esperando atrás da faixa amarela como se entendesse o significado dela, havia duas pombas. Paradas ali, como se não estivessem fazendo outra coisa que não aquilo que os humanos faziam: estavam à espera da próxima composição. Caminhei na direção delas, imaginando que levantariam voo quando eu me aproximasse o bastante. Mas elas nem se mexeram e, faltando uns cinco passos para alcançá-las, parei, virei-me em direção ao ponto em que o trem iria parar e, depois de lançar um olhar para o lado delas, de cima para baixo, olhei em direção ao túnel de onde viria o trem. Quando ele estivesse chegando, supus, as pombas iriam embora. Mas elas permaneceram inabaláveis, mesmo quando o trem veio rugindo, quando passou, quando as portas se abriram. As duas deram passinhos para o lado, como estivessem acostumadas a abrir espaço gentilmente para que as pessoas de saída tivessem tranquilidade de movimento. Então olhei novamente para baixo na direção das duas, antes de entrar, imaginando que aquilo encerrava minha cota de bizarrices do metrô para a década, mas a verdade é que a história não tinha terminado. Quando todos entraram e o apito soou para indicar que as portas iam se fechar, ambas deram dois pequenos saltos para a frente, evitando o intervalo entre o trem e a plataforma e entraram no vagão. As pessoas trocaram olhares entre e si e pequenos comentários aos quais não prestei atenção. Pelo menos um sujeito sacou o celular para fazer a foto que imagino que ainda esteja fazendo sucesso nas redes sociais. As pombas permaneceram calmas e civilizadas por duas estações e então desceram, com o mesmo modelo de salto que haviam usado para entrar. E lá se foram, caminhando de maneira calma em direção à saída, sem fazer uso das asas até aquele momento para alçar voo ali embaixo. Fiquei pensando quando e se isso se daria. Então, sim, agora eu tinha mesmo encerrado minha cota de bizarrices, mas para o século.

 

75. Dilatar e comprimir o tempo

Imagem | Andrew Wyeth

 

Relações humanas, essas coisas frágeis sustentadas por ar e boa vontade. Partículas do que a crença comum denomina amor, companheirismo, simpatia, ar, ar, ar. A ciência finge indiferença, estuda feromônios, comportamento dos primatas ou de índios considerados primitivos. Por extrapolação, isso deveria se aplicar a todos os demais. Ergo. Mas é tudo ar fino, partículas de amor, distribuídas com critérios não mensuráveis. Quando se entra num trem de metrô, não importa o sentido, o viajante está indo para frente no espaço e no tempo. A não ser nessa narrativa de Julio Cortázar, O perseguidor. O personagem, Johnny Carson, um saxofonista norte-americano morando em Paris, conversa com o jornalista que narra a história, Bruno, e que pretende lhe escrever uma biografia. É fácil sorrir quando se é jovem e feliz, mas Carson vive num tempo mental tão atribulado e periclitante que não há espaço para ser feliz, portanto, nada de sorrisos. Uma singularidade do espaço e do tempo, dizem os físicos, o momento em que ambos deixam de existir. É como o que se passa na mente de Carson. Entre uma estação e outra, num deslocamento de poucos minutos, no entanto a mente se expande e recupera lembranças da ex-mulher e dos filhos, o que faz a percepção se ampliar. Os dois ou três minutos nos quais cabem uma fatia generosa do passado. A passagem, disse depois o escritor durante entrevista, é autobiográfica. As distrações são chamadas por ele de “estados de passagem” que permitem compreender as outras dimensões em que os eventos se dão. Física intuitiva. Aliás, diga-se de passagem, físicos devem muito mais às intuições do que estão dispostos a admitir. Para Carson, o tempo pode ser visto a partir de duas teorias. Numa, é um tubo pelo qual se entra para se sair do outro lado, um elevador que te leva ao quinquagésimo segundo andar. Você começa a contar uma história quando entra e a conclui ao sair, enquanto uma distância de cinquenta e dois andares foi posta entre você e a cidade. Na outra hipótese, o tempo é uma sacola na qual você coloca discos, vamos dizer, lps. Você pode esvaziar a sacola e colocar outros discos lá dentro, mas a quantidade que cabe é sempre a mesma. A loja inteira pode ter passado pela mesma sacola, mas uma quantidade limitada de cada vez. O problema é, não é possível reverter a seta do tempo, a não ser na física intuitiva da mente. Continua-se humano ao se sair da composição do metrô, continua-se a gostar das pessoas a partir de ar fino, a simpatia, ou a desgostar, quando se mobiliza a antipatia. Um ar parecido com aquele que se respira: invisível, mas essencial.

74. Rebanhos

Imagem | Andrew Wyeth

 

Trabalho é um massacre. Se fosse opcional talvez poderia manter sobre si a aura de dignidade que supostamente o envolve. Sendo obrigatório para quem depende dele para sobreviver, é na verdade a forma mais disfarçada de escravidão que o capital impõe às multidões do planeta: o novo Senhor e os fiéis seguidores, cordeiros do trabalho. Sua liberdade é escolher entre o trabalho a e o b, mas a opção sem trabalho não existe. Desci ao metrô com a cabeça envolvida nesse tipo de pensamentos e tentei me distrair um pouco observando as cores no ambiente. Cores claras e pálidas nas paredes, supostamente porque algum estudo sugeriu que isso acalma as pessoas. Mas você não deseja que essas mesmas pessoas se distraiam demais, o lugar implica certo risco, portanto há cores fortes e chamativas para contrastar, por exemplo na faixa amarela pintada no chão da plataforma onde daí a pouco estará parado o trem de metrô, com o aviso dizendo para permanecer atrás da faixa até a chegada do trem. Não pode ser vermelho porque isso iria assustar demais os obsessivo-compulsivos, que talvez se recusariam a ultrapassar a faixa para entrar no trem. Não pode ser cor suave, existe a possibilidade de ela transmitir a sensação de que tudo bem colocar os dois pés do lado de lá e esperar sem susto. Nas escadas de acesso existem anúncios, muitos e muito coloridos, com promessas de sonhos que custam caro, embora digam justamente o contrário, nenhum sonho custa caro, um deles tem a desfaçatez de sugerir. Um ou outro se dedica a divulgar cultura (mas raros, bem raros, anunciam livros; quando o fazem, é para divulgar os livros que já possuem natural vocação a se tornar campeões de venda; reforço positivo, portanto, a preguiça do publicitário e da editora e por aí afora). No trem, o sistema de cores para indicar as linhas geralmente tem preferência por cores básicas, vermelho bem vermelho, azul bastante azul. Alguns metrôs são particularmente generosos com a profusão de indicações por todos os lados, de modo a deixar o usuário o mais confortável possível naquele emaranhado de possibilidades. A coisa é tão intensa que sou levado a pensar que em lugares assim só os idiotas se perderiam. Mas a quantidade de gente atarantada a bater cabeça e a recorrer a informação — de outros usuários ou do pessoal das companhias metropolitanas —, além da minha própria experiência de equívocos que cometi, me leva a perceber que a coisa é um pouco mais complicada do que suponho. Tudo para dar aparência eficiente no transporte dos trabalhadores: de casa para o trabalho, onde investirão as melhores horas do dia (o sol brilha lá fora) e os melhores anos da vida, a promover a fortuna dos já favorecidos. Depois de volta para casa, o mesmo trilho, talvez até o mesmo trem. Bonito, isso. Com cores suaves, ou chamativas, com informações claras e eficientes, com suicidas provocadores e rebeldes, eles que se recusam a ceder à lógica compulsiva do trabalho, da tragédia de permanecer vivo. O rebanho humano de ovelhas bale, não se sabe se de contentamento ou se de conformação, nem qual é o mais triste diante das circunstâncias.

73. Mala que foge

Imagem | Andrew Wyeth

 

O relógio marcava cinco quando o metrô chegou à estação. Certas horas mortas do dia, sobretudo as que se estendem pelas noites vazias, podem fazer com que algumas estações fiquem com aspecto fantasmagórico. Quase sempre, nessas ocasiões, fico pensando se não me transformei num personagem de filme de terror. Entretanto sei que isso é bobagem. Devo temer antes os malucos de carne e osso e os ladrões em particular do que as criaturas assustadoras que meu medo projeta na tela da imaginação. O horário, no caso, era mais propício a que nada ocorresse. Fim de tarde, tinha alegado uma terrível dor de cabeça para fugir do trabalho porque estava atravessando um dia que só pode caracterizado como sufocante. Meu plano era ir ao cinema e torcer para que meu chefe mantivesse a rotina pessoal de ir para casa e não me flagrar à saída do cinema, para depois se ver autorizado a me passar descompostura, no dia seguinte, quando eu chegasse para trabalhar. Mas, ao que interessa. Saíram apenas cinco pessoas do metrô na estação, além de mim, quatro delas ainda estavam no ritmo apressado de quem tem negócios a tratar ou está atrasada para um encontro, de modo que rapidamente se dispersaram. Apenas um homem de aspecto sombrio ficou para trás, mas ainda a minha frente. Ele puxava uma mala com rodinhas um pouco atrás de si e, pelo esforço empregado, era possível deduzir que estava bem pesada. Deve ter roubado um banco e agora está levando o ouro aí mala, confesso que pensei, embora soubesse que isso é uma bobagem, assaltante de banco não usa metrô para fugir. Ou melhor, talvez por isso mesmo seja um meio de transporte confiável para essa categoria: ninguém iria desconfiar dessa rota de fuga. O sujeito, Ronaldo, de vez em quando parava, então ficava ocupado em revirar os bolsos, à procura de algo que parecia não se conformar que não estivesse ali, em seguida se punha de novo a puxar a mala por mais um trecho. Quando parou pela terceira vez, me dei conta de que estava na verdade esperando que eu passasse logo por ele e o deixasse sozinho no túnel. Meus pensamentos a respeito de ouro se converteram em pensamentos a respeito de bomba e, em seguida, pensei também na pobre esposa do sujeito, literalmente dilacerada pela intempestividade do marido e colocada, ao menos parcialmente, desconfio que não tenha cabido por inteiro, na mala que ele agora arrastava com dificuldade, à procura de local ermo para o descarte. Todas as minhas conjecturas, eu sabia, eram produto da minha paranoia galopante, resultado talvez da culpa por estar cabulando trabalho. Nos dias seguintes, redobrei a atenção na leitura dos jornais à procura de encontrar o relato da mala e do conteúdo misterioso que ela continha: ouro, bomba ou cadáver desmembrado. Nada. Mas foi bom. Decidi dar um tempo das desculpas esfarrapadas que arranjo para fugir do trabalho e concluí que o melhor é mergulhar nele com novo ímpeto. Mas a verdade é que estou querendo enganar a quem? Não é possível eu me agradar do trabalho que faço. Ele parece ter sido criado para me atazanar a vida. Se pelo menos a mala contivesse algo bombástico, teria a respeito do que conversar pelos próximos dias com meus colegas de trabalho e com meu chefe.

72. Leitora comovente

Imagem | Andrew Wyeth

 

A mulher se sentou justo a minha frente e tem consigo um livro, que ela abre e se põe a ler. Ela tem um rosto anguloso, mãos de dedos finos e gentis que seguram com delicadeza o exemplar que, para meu grande pasmo, é de um dos meus escritores preferidos, embora a minha lista dos que estão nessa categoria não pare de crescer, de modo que se torna uma luta e fadiga reorganizá-la para tentar manter sempre um mesmo número mínimo e razoável. Ela parece ter enorme respeito pelo exemplar e o abre com cuidado, sem forçar as páginas para que o livro fique escancarado, como muita gente faz. Os olhos dessa moça, Ester, são amendoados e deslizam de um lado a outro da página com tanta sagacidade que me sinto enamorado. A leitura tal como ela pratica é um gesto de nobreza e abnegação num mundo crescente de ruídos comezinhos e balbúrdia incessante. Deveria existir medalhas para leitores que se arriscam em público no país. A mim me parece que vão abordá-la, interrompê-la, alguém tentará resgatá-la daquele desgarramento com oferta de balas ou puxando assunto, para que ela se retire da leitura, porque isso não é visto com bons olhos e se sente ser necessário fazer alguma coisa. Que ela resista e calmamente retome a leitura em seguida só me torna um admirador ainda mais consistente. Eu pediria autógrafo, se isso não a afugentasse ou, pior, a interrompesse. Ester, deusa da contemplação, pensamentos e ideias balançado de um lado a outro naquela mente, na valsa do conhecimento. Não deveria, mas ver alguém lendo dessa maneira me põe sentimental para cacete e fico sempre com uma réstia de otimismo que carrego comigo por um tempo depois de ver a cena. O mundo me parece que ainda tem conserto, enquanto pessoas como Ester se dispuserem a continuar a leitura. Ao ler, Ester se transporta. Tal como a protagonista desse romance, ela recua a um outro tempo, décadas atrás, um país diferente e outras circunstâncias. Ester também se torna espiã, correndo riscos, travando discussões, procurando ser cautelosa na medida do possível: é difícil se manter cautelosa quando é preciso correr riscos. É tão fácil esse transporte. O que não é nada fácil é ter que depois retomar a realidade, com as demandas implacáveis. Aí ela desenvolve certa fumaça de rabugem que persiste por um tempo. Mas é abrir de novo o exemplar e o pessimismo some, num passe de mágica. Ela trata a esses autores que a interessam como amigos pessoais, não importa que alguns deles tenham morrido há dois séculos. Amigos inteligentes que melhoram a qualidade de vida de Ester inúmeras vezes. E a minha, por contaminação, também adquire certa grandeza.

71. Formal como armadura

Imagem | Andrew Wyeth

 

Ricardo, vamos dizer que o nome dele fosse Ricardo, parecia realmente desconfortável dentro do terno preto. Não era a cor, obviamente, ternos pretos são considerados elegantes, era o modelo. A verdade é que parecia a primeira vez que ele usava terno e além de se sentir pouco à vontade, ele também parecia não saber qual era o melhor jeito de se portar dentro daquela indumentária altamente incompatível com o calor tropical e com meios de transporte relativamente informais como metrô. O idiota que trouxe o terno para os trópicos, o que tinha na cabeça além de merda e um monte de presunção para acompanhar? Ricardo abria e fechava os botões, ajeitava a gravata embaixo, depois subia as mãos até o nó e tentava arrumá-lo, mas ele estava no prumo e depois de mexer Ricardo na verdade o desorganizava no próprio pescoço. Era de se ver que havia um enorme abismo entre ele e a necessidade do uso daquela roupa ridícula. Só os tolos precisam de ternos, as ovelhas que baliram sua concordância às convenções sociais mais ridículas. Me lembrei do Cretino em quem quase bati outro dia no metrô. Ele sim, ficaria muito bem vestindo terno. É o tipo de roupa que diz, veja, sou tão inseguro mas quero muito te impressionar vestindo justamente o tipo de roupa que é considerada a mais adequada. Fico imaginando que um dia recebo convite para um jantar de gala que exige um traje desses, explicitamente está dito que é preciso vestir roupa formal. Pois bem, eu compareço ao jantar, mas estou vestido de armadura. Querendo ou não, terão que aceitar que se trata de traje formal. Eu me sento e me conduzo como um cavalheiro, o jantar inteiro. Converso através da viseira levantada do elmo a respeito de política, economia, o futuro da nação, o passado dos antepassados, as crises atuais que assolam o país e preocupam a todos. Sou atencioso, gentil, sei escutar com atenção e responder com argúcia. O único que recuso é o charuto, por medo que caia dentro da armadura e me queime. Quando me perguntam se estou confortável dentro da indumentária, respondo que sim, ela me parece adequada e menos quente do que o terno do interlocutor, no caso masculino, ou o vestido da interlocutora, se se tratar de mulher, apenas com não tanta mobilidade, mas o que se revela saudável no fim das contas, uma vez que me tolhe os excessos. As convenções, digo, e acrescento reticências para deixar a pessoa desnorteada, sem saber se eu sou louco ou se sou movido a desfaçatez a toda prova e sendo irônico naquele momento. Os anfitriões e os convidados jamais me chamam novamente para outro jantar, o que era a minha intenção. O problema é apenas o seguinte: existe a chance de alguém achar que é o momento de voltar a moda das armaduras e elas se tornarem o novo traje formal. Aí os convites vão chover e não saberei como me desvencilhar. Uma convenção mais estúpida sempre corre o risco de exercer esse apelo irresistível.

70. Cretino impune

Imagem | Edward Hopper

 

Você é uma songamonga, Marta, o sujeito estava dizendo ao celular, mas todo mundo podia ouvi-lo no vagão, porque ele estava falando alto demais, como se fizesse questão de tornar público o ponto de vista que mantinha a respeito da mulher do outro lado da ligação. Uma perfeita songamonga, acrescentou, a mão que estava livre regendo o ritmo à frente do corpo, como se fosse necessário a repetição para que a songamonguice de Marta pudesse compreender, de acordo com a indução do maestro. Fiquei pensando na frase do Cretino — não sei que outro nome lhe dar. Não fazia sentido. Porque, se houvesse algo como a perfeição da tolice, conforme sugeria a frase que ele empregou, então a pessoa do outro lado da ligação, a se confiar na capacidade do sujeito de estabelecer um diagnóstico confiável, não seria capaz de compreender as implicações da frase. Portanto, não poderia haver a integralidade da tolice, ela precisaria de algum resquício de inteligência para que a compreensão se desse, o que tornava o argumento de Cretino inválido. Assim sendo, ele insistir em chamar Marta de songamonga apenas destacava o quão ridículo ele era, e qualificá-la de perfeita songamonga só agravava a impressão geral de todos no vagão de que aquele sujeito era mesmo e tão-somente ridículo. Aliás, Ridículo, pronto, o outro nome que pensei para ele. E virando-me para os demais ocupantes do vagão, sugeri algo. Aí, pessoal, e se a gente mostrasse para o Ridículo aqui que não é assim que se trata uma mulher? Éééé!, as pessoas reagiam. Eu pegava embalo: se a gente desse uma lição no Ridículo, pendurando ele pelas bolas ou enchendo a planta do pé dele de porrada? Isso aí, a turba se animava. Se a gente o lançasse para fora do metrô antes de as portas se abrirem? Siiiim, isso mesmo!, joga, joga, a multidão se animava, exultante. Eu tinha me transformado no líder da gangue, regente do coro. Ridículo estava começando a se encolher e mostrar os olhos assustados do arrependimento com fins de nos convencer a mudar de ideia e tenho certeza de que se conseguisse dizer algo ia mostrar profundo arrependimento por ter falado com Marta com aquela absoluta falta de modos. Mas eu não ia deixar ele dizer mais nada. Primeiro virei-lhe um tapão na orelha com tanta força e propriedade que ele caiu de lado. Aproveitei para erguê-lo pelos cabelos com uma das mãos até que estivesse de joelhos e o estapeei mais umas três ou quatro vezes, frente e verso da mão livre, indo e voltando, só para lhe deixar as bochechas vermelhas. Claro que na vida real ele destratou Marta mais uma ou duas vezes ao telefone na maior altura e saiu intacto, sem que eu nem ninguém o incomodasse com nossos pruridos contra as manifestações públicas de cretinice explícita, que ele desempenhava com excelência e de sobra. Talvez o verdadeiro cretino seja nossa omissão, pensei em seguida, mas era tarde.

69. Reflexões sombrias

Imagem | Edward Hopper

 

Esse equilíbrio para mim é o fundamental. De um lado, não consigo achar que me conheço completamente. Quer dizer, sei quem sou, o que espero da vida, as minhas limitações, sonhos, desejos, frustrações, decepções. O básico. Mas quando se trata de ter domínio das camadas mais profundas, os recados do subconsciente, aí as coisas se complicam. E então olho a minha volta e vejo essa multidão de pessoas fazendo mais ou menos as mesmas coisas que eu, ou seja, indo e voltando do trabalho, alimentando sonhos e compulsões, fantasias e complicações, e concluo que esse é o outro lado da equação, os humanos se parecem todos uns com os outros e as pequenas especificidades são apenas firulas. No grande quadro, o movimento de todo mundo é praticamente o mesmo. O que torna tudo meio besta, não é? Às vezes penso no quanto me importo com a minha própria vida, o quanto estou atrelado a ela e o quanto ela é significativa para mim. Mas as minhas memórias, as emoções que senti ou voltarei a sentir no futuro, os discursos que fiz ou farei, as pessoas com as quais interagi, isso só tem importância para mim e quando eu não estiver mais vivo essas coisas serão devidamente esquecidas e engavetadas. Como foram esquecidos todos os eventos do passado que envolveram pessoas comuns em situações corriqueiras. As horas gastas em solitária travessia pelas redes sociais, os momentos vazios em que seu rosto de transformou numa máscara de indiferença enquanto seu corpo era transportado sob a superfície da terra num vagão de metrô. Mesmo que a mente estivesse fervilhando de ideias e pensamentos, você simplesmente estava ali, em figuração no grande longa-metragem da humanidade, sem fazer nada com aquelas ideias e pensamentos além de tê-los e guardá-los para si ou registrá-los num diário, também esquecido e engavetado. Que bom que você viajou a outros países e tem fotos dos pontos turísticos considerados importantes: não importa por quem e por quê. Que bom que você sustenta que essa experiência foi importante para expandir os horizontes e seu alcance cultural foi renovado. Ou que pena que você nunca pôde viajar ao exterior. Tanto faz. Mesmo que tenha um emprego no qual possa dizer que fez e faz diferença na vida das pessoas, porque altera de alguma forma o modo como alguém vive, e mesmo que essa pessoa guarde uma lembrança carinhosa de você e dessa diferença que você exerceu sobre a vida dela, o sentido de tudo isso continua a escapar e por mais que os ditames de um pensamento lógico se coloquem para você e procurem te ajudar na organização racional de todas essas atividades, o sentido último de tudo insiste em não se apresentar. A verdade é que você está sozinho, na companhia de sete bilhões de semelhantes, e nem adianta intensificar as relações porque você sabe que é apenas um disfarce ruim. A solidão é a base de tudo. Escrever é uma das formas de tentar romper essa barreira. Há outras. Mas é tudo disfarce ruim. Mesmo que você esteja disposto a admitir que a solidão é a essência e queira por isso intensificá-la, porque quem sabe assim seja possível chegar ao fundo das coisas, isso termina por não esclarecer nada. A solidão também é ridícula. E eis de volta o ciclo do inexplicável, te provocando para rompê-lo, para compreender, fazer alguma diferença. Mas nada acontece. E mais nada há para se acrescentar.

68. Quem está no controle

Imagem | Edward Hopper

 

Eu tenho esse amigo, ouvi um sujeito dizendo para o outro, sentados ambos a minha frente, me mostrando as nucas grossas. Ele gosta de montanhas, vive arrumando fotos de lugares montanhosos, ele sonha em ser alpinista. O sujeito que estava falando era careca, mas dava a impressão de que tinha raspado intencionalmente a cabeça. Não era careca natural, não sei dizer como cheguei a essa dedução. O outro, ao lado, usava um chapéu cheio de estilo, parecia novo, com abas duras, um chapéu que eu me lembrava de ter visto sendo usado por aquele poeta português que durante muito tempo foi famoso, Fernando Pessoa. O do chapéu disse algo. E você acha que ele leva jeito para a coisa? Ele podia treinar alpinismo para ver se gosta de verdade, ele disse. O careca, Evandro, vamos dizer, rebateu. Acho que não é nada disso. Ele jura que gosta de montanhas, mas se tivesse de subir uma, se visse como é realmente duro e difícil e complicado, desafiador para o corpo e para a mente, eu acho, com toda sinceridade, que ele não ia dar conta. O que ele tem é um sonho montanhoso, não passa disso. A realidade, a dor, o cansaço, dependendo da montanha o frio, quando é de verdade, isso não lhe interessa. Ele idealiza a montanha, o que é compreensível, porque, quando você pensa, quantas pessoas já não fizeram isso e quantas vezes o tema da montanha não apareceu, por exemplo, na literatura? Pois bem, é disso que se trata. De supor que a montanha te coloca numa posição privilegiada, acima do comum dos mortais. Lá em cima o ar é mais puro justo porque o oxigênio se torna mais raro, as ideias mais elevadas e rarefeitas aproximam-se do essencial. A montanha parece um paraíso verticalizado. Meu amigo tem todos os motivos para ficar encantado, enquanto mantiver a distância. O do chapéu, Valdo, falou. Todos os motivos menos o essencial, ele disse. O quê?, Evandro quis saber. Valdo respondeu. Um mecanismo para aprender a lidar com os outros, trabalhar em equipe, esquecer o conceito do homem como ilha para poder incorporar o arquipélago. Subir uma montanha requer isso, o coletivo. Seu amigo me parece um solitário sonhador. O segredo é esse, ele disse, antes de os dois se levantarem e saírem pela porta do metrô, me deixando sem saber o fim da conversa, o segredo é que a gente acha que está no controle de nossa mente, quando na verdade é ela que nos controla.

67. Valentina

Imagem | Edward Hopper

 

Ela tem corpo esguio e insinuante, daquele modelo que parece não caminhar como uma pessoa qualquer, mas que desliza a alguns centímetros do chão. Os cabelos são cacheados curtos, parecem pequenas molas felizes, o que me deixa feliz por ela não ter feito a opção de alisar, porque é mais bela assim. Sentou-se a minha frente e reparou que eu tomava notas no meu caderninho de capa dura e preta, depois parava para observar em volta antes de voltar a fazer novas anotações. A certa altura nossos olhos se encontraram e ela sorriu, em vez de desviar os dela, como as mulheres geralmente fazem nessas situações. Parecia um sorriso cúmplice, o de alguém que reconheceu um semelhante. Eu não tinha o que perder, portanto sorri de volta. O vagão estava se esvaziando, o que começa a deixar os remanescentes mais à vontade. Você está escrevendo sobre as pessoas do vagão?, ela intuiu corretamente. Tinha uma voz mais grave do que eu podia ter imaginado. Se canta, ela deve ser contralto, não tenho dúvida. Sorri novamente. Isso mesmo, eu disse, acertou na mosca. Escrevo histórias a respeito dos passageiros. Ela cerrou as sobrancelhas. Mas não vi você conversar com ninguém, disse. Como é que fica? Sou escritor, eu invento, respondi. Só me inspiro nas pessoas que vejo, depois crio uma situação, trama, nomes e por aí. Ah, ela disse, parecendo surpresa. Que interessante. Bom, para mim era mesmo interessante, mas suponho que para ela estava mais para curioso, observar o escritor tomando notas no vagão do metrô. Sorri de novo. Mas posso contar uma história sua, se você quiser, acrescentei. Basta você me contar e eu anoto. E se você me disser o seu nome, também incluo. Aí a história não vai ser inventada. Ela pareceu recuar, como se de repente eu tivesse tocado num ponto sensível ou tivesse me transformado num daqueles passageiros desagradáveis que assediam mulheres. Mas exagero, o motivo do recuo devia ser outro, a falta de hábito de fazer relato a um estranho. Não sei de nenhuma história interessante, assim de cabeça, ela disse. Não precisa ser nada demais, falei, uma situação qualquer que tenha chamado a sua atenção serve. Ela lançou os olhos para cima, para os lados, vasculhava na memória alguma coisa que pudesse me ceder. Ah, disse, realmente não sei, vou ficar te devendo. Além disso, eu desço na próxima. Não tem problema, falei. Você não vai ficar me devendo, porque vou usar isso aqui, essa pequena conversa que a gente teve até agora. Ah, ela falou, tudo bem, mas não foi nada assim tão interessante isso que a gente conversou, foi? É aí que eu discordo, disse, não apenas achei interessante, como agora, ao discordar de você, posso aumentar um pouco e dizer que tivemos logo de cara a nossa primeira briga. Ela sorriu. Você é louco, disse. E se foi.

66. Os que merecem

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Pessoas felizes não frequentam metrô, pensava comigo, sempre que olhava a média sisuda das expressões das pessoas ao redor. Mas um dia se sentou ao meu lado esse sujeito, Lucas, que tinha tudo para passar despercebido — olhos comuns, boca comum, roupas comuns, cabelos penteados. Sabe, ele me disse e acho que falou comigo só porque calhou de ser eu que estava a seu lado, mas podia ser qualquer outra pessoa, sabe, ele disse, ainda bem que existem as segundas chances. É mesmo?, respondi, completamente interessado em morder a isca. E o que te faz dizer uma coisa dessas? Bem, ele respondeu, veja o meu caso. Meu pai cometeu suicídio quando eu era pequeno e fui eu que achei o corpo. Cresci pensando, de mim para mim, que aquele era o destino que também me estava reservado. Por isso comecei a aproveitar a vida logo, antes que ela chegasse ao fim. Ou seja, comecei a beber e, mais tarde, me viciei em cocaína. Queria consumir com avidez tudo porque sabia que ia ser breve. Eu olhei para ele, que gesticulava as mãos grandes com calma, enquanto ia dizendo aquelas coisas. Apreciei esse movimento lento. Ele continuou. Estava à espera de um tiro ou uma doença terrível como a aids, desafiava meus traficantes, por três vezes fiz roleta russa com uma arma. Esperei que ele fosse começar naquele momento uma lenga-lenga a respeito de ter encontrado Jesus e comecei a me irritar por antecipação, mas estava enganado. Então conheci uma mulher, Lúcia, que também era viciada, ele prosseguiu, e ela engravidou e aquilo foi o suficiente de força de vontade que a gente precisava. Clínica de desintoxicação, você sabe, a crise toda que é largar a droga, mas largamos. Nossa filha, Flávia, nasceu com baixo peso e um pouco de problema pulmonar mas fora isso é saudável e o que ela tem pode ser tratado. Estamos sempre de olho, porque há o risco de ela se interessar por drogas, isso a gente não pode descartar. Mas por enquanto é uma criança adorável e tudo vai bem. Eu e minha mulher temos emprego, uns dias que atravessamos às vezes são amargos, mas estamos tocando o barco. Flávia foi o disparador da nossa segunda chance. É ela que eu estou indo buscar agora na escolinha. Aliás, com licença, a minha parada é a próxima. Ele se levantou, deu um sorriso tímido para mim e foi buscar sua segunda chance na saída do colégio.

65. Não se iludir é importante

Imagem | Edward Hopper

 

O sujeito tinha uma careca tão lustrosa que rebrilhava e atraía a atenção das pessoas dentro do vagão. Sentou-se próximo a mim e o que em seguida chamou minha atenção foi a armação dos óculos, em formato ligeiramente arredondado e de cor escura, quase preta. Depois reparei que usava gravata borboleta vermelha — o que há com os carecas e as gravatas borboletas? Nunca consegui resolver essa situação e penso se algum instituto de pesquisa conseguiria. O terno era um cinza bem claro, o que conferia ao sujeito, Clodoaldo, um aspecto de ser extremamente zeloso com a limpeza pessoal. Nas mãos, ele levava um saquinho com bastante água e flutuando desajeitado nela estava um peixe de briga de um tom azul que parecia coisa de cinema, o azul tão intenso que formava alguns tons de branco nas bordas do corpo. As nadadeiras eram cheias de reentrâncias e, na calda, a exuberância se fazia ainda mais intensa. Era um magnífico exemplar de peixe de briga. Clodoaldo o estava levando para dar de presente ao neto. Júlio César, filho de Clodoaldo, desentendeu-se profundamente com o pai há treze anos. Mudou-se de cidade, mudou também inúmeras vezes de emprego e namoradas. Com uma delas, Jane, teve um filho, João Vítor. Quando o menino tinha três anos de idade, Jane o deixou com o pai e sumiu no mundo de forma irresponsável. Cinco anos se passaram e agora, há dois meses, uma oferta de emprego trouxe Júlio César e João Vítor para a cidade onde mora Clodoaldo, pai e avô. Quando soube que seu filho havia voltado e, além disso, que trouxera um neto, Clodoaldo deu um jeito de arrumar o número do telefone de Júlio César e ligou para ver se era possível reatarem contato. Em princípio, Júlio resistiu, mas finalmente cedeu aos apelos do pai para que pudesse conhecer o neto. Assim, Clodoaldo comprou o peixe azul e agora o transporta pelo metrô para dá-lo de presente ao neto. Não ter um aquário na casa dele será motivo para sugerir um passeio até uma loja especializada, a pretexto de adquirir o primeiro aquário do neto e ensinar a ele alguma coisa a respeito de animais de estimação silenciosos, caso dos peixes e tartarugas. Começa ali a educação de João Vítor, garoto simpático, curioso e perceptivo, para se tornar uma pessoa introspectiva.

64. O metrô e a vida

Imagem | Edward Hopper

 

Comecei a pensar a respeito dessas histórias que invento acerca do metrô e da vida dos passageiros. Não seria de todo ruim se elas pudessem virar um livro e ele poderia, por exemplo, ser lançado numa estação de metrô, os usuários se interessando por ler as narrativas, me procurando para contar histórias estapafúrdias, verdadeiras e acontecidas com eles, ou simplesmente inventadas também, com um potencial imaginativo estupendo que me faria ter vergonha por não ter pensado nisso antes. Num momento de delírio, cheguei a imaginar que pegava algumas das histórias, fazia a diagramação num folheto, milhares de cópias, e então embarcava para uma sucessão de viagens nas quais distribuía essas duas ou três narrativas às pessoas, dentro de uma nova modalidade de me transportar que consistia em ficar mudando de vagão a cada parada, o folheto uma espécie de trailer do livro que depois seria publicado, O metrô e a vida. No rodapé eu coloco o endereço do blog onde outras histórias também são veiculadas. Dias depois, recebo um comunicado dos advogados da companhia do metrô me convocando a aparecer diante de um juiz. Mas meritíssimo, eu explico, no dia marcado, diante do homem ajuizado, só estava tentando levar um pouco de arte e reflexão aos passageiros do metrô, que mal há nisso? Em vez de me punir por vandalismo ou perturbação da ordem, deviam era me ajudar com o projeto, concluo. O juiz, que obviamente não frequenta metrô nem tem particular apreço por arte ou reflexão, não quer nem saber dos meus argumentos e me condena a prestar serviços comunitários e me insta a não ser reincidente. Mas a história ganha os jornais e televisões e repercute de um jeito inesperado, atraindo uma série de apoios dos usuários do metrô e chamando a atenção para o livro, que começa a ganhar ainda mais repercussão ao ser traduzido e vendido naquelas máquinas de venda automática que existem em várias estações. Quando o livro estava prestes a se tornar um campeão de vendas em vários pontos do planeta, eu acordei do meu delírio porque minha estação estava se aproximando. Mas a semente da ideia havia sido lançada e comecei a acreditar que nem era tão delirante, no fim das contas.

63. Pilantra simpático

Imagem | Edward Hopper

 

Não é muito comum que alguém no Brasil receba o nome Nicanor. Parece um nome latino-americano, mais especificamente argentino. Embora, claro, devam existir Nicanores também no Chile, na Bolívia ou no Uruguai. Mas Nicanor parece, soa argentino e melhor ficar com isso. No Brasil, ao contrário, os nomes não soam exatamente brasileiros, mas norte-americanos, mesmo quando abrasileirados pela má pronúncia e o entendimento sofrível: são Maicons, Maiquels, Valdisneis, Jefersons, Uelintons, Braians, Cleitons, uma infinidade de adaptações esdrúxulas e imaginativas. Por isso, quando Nicanor subiu ao trem do metrô onde eu estava, o primeiro que notei foi violão que ele carregava pelo braço do instrumento, e que colocou diante da barriga, fazendo uso de uma alça, iniciando os primeiros acordes para chamar a atenção de todos. Em seguida anunciou o nome e disse que ia tocar uma guarânia, então dedilhou o instrumento com um tipo de sonoridade que me pareceu estranha e familiar ao mesmo tempo, cantou alguma coisa cujas palavras eu entendia apenas soltas, sem compreender o conjunto e por fim deu a coisa por encerrada porque precisava passar o chapéu entre a solidariedade dos passageiros. Quando se aproximou da minha nota de dois, um excesso de generosidade que me permitia entabular um rápido diálogo, arrisquei um castelhano. Sois arrrentino, indaguei, prolongando o r gutural o melhor que podia. O chapéu havia engolido a minha nota de dois a essa altura, de modo que ele se permitiu apenas um sorriso maroto e uma piscada cúmplice, como se me pedisse que fosse o fiel guardião de seu segredo. Original de Madureira, disse, sem qualquer sotaque. Mas e seu nome?, insisti, quando ele já avançava para o fundo do carro, se afastando do alcance das minhas perguntas incômodas e se aproximando das moedas que esperavam ser recolhidas, como flores num campo. É Agnaldo, ele ainda disse, mas o trem estava na desaceleração ao se aproximar da plataforma e ele saltou para fora muito rapidamente, o violão de novo levado pelo braço, como se Agnaldo fosse um passageiro comum que leva consigo o instrumento a caminho de algum lugar.

62. Os jogos da sorte

Imagem | Edward Hopper

 

O sujeito se pôs ao meu lado e começou a fungar. Fiquei pensando se seria gripe, alergia ou apenas um vazamento que no caso dele era uma característica incorrigível, tinha passado a vida inteira fungando, foi o que supus. Funga, funga, comecei a ficar irritado. Levantei-me e fui para o fundo do vagão, fingindo que estava próximo de descer. Mas não era o meu dia de sorte. Havia um sujeito tossindo compulsivamente, aquela tosse horrorosa (qual não é?) de cachorro molhado. Decidi-me por novo deslocamento até o meio do vagão e minha sorte não melhorou. Havia um sujeito pigarreando o tempo todo, como se sua garganta fosse um animal prestes a sair daquele corpo. O sujeito precisava de um exorcista. Fiquei pensando nos motivos pelos quais eles não se juntavam para formar um trio musical, Doentes do Pulmão. Iam fazer sucesso. Tomei uma decisão que imaginava que seria sábia. Desci do vagão e entrei no outro, na mesma composição. Foi como mudar do avesso a minha sorte. Havia, sentado diante de mim, duas mulheres lindas, Carla e Patrícia, e uma delas, para minha mais absoluta felicidade, começou a me lançar olhares na mesma intensidade com que eu lançava olhares de volta, para ambas. Iniciou-se uma dessas paqueras inocentes de metrô, uma espécie de reconhecimento de interesses mútuos, mas que não avança para nada além disso mesmo, um jogo divertido apenas de provocações silenciosas e certa manifestação de felicidade descontraída. Duas estações depois elas se foram, mas eu tinha esquecido os gripados do outro vagão e pensava em como a vida é uma aventura de proporções inusitadas.

61. Música e liberdade

Imagem | Edward Hopper

 

Sempre achei que os vagões do metrô são um ótimo lugar para se ouvir blues. Boa parte da estrutura rítmica dessa música decorre do barulho repetitivo das rodas do metrô contra os trilhos. No original, o som era de trens que percorriam o interior dos Estados Unidos, levando negros de um lado a outro, em busca de onde houvesse proposta de trabalho. Não sou exatamente negro, estou mais para mulato, e embora não tenha nascido na América do Norte, gosto muito do blues. Hoje estava ouvindo John Lee Hooker e se associaram os dois sons repetitivos dos trilhos e da música, e comecei a me embalar, entrando em seguida num sono agitado, tudo por estar dormindo mal nos últimos dias. Quando despertei, havia passado duas estações além da minha. Desci, peguei a composição no sentido contrário e como estava mesmo atrasado, passei numa padaria para tomar café, cheguei portanto bastante tarde ao trabalho, o que fez meu chefe reclamar. Bem, eu disse para ele, que se chama João Paulo, por que não me manda embora se está insatisfeito? O fato de estar de saco cheio e com sono acumulado de semanas, desde que vi um sujeito se matar no metrô, me estimulou, não ia me importar de sair à procura de outro emprego. Ser demitido pelo menos me daria algum dinheiro extra, o que não acontece se a iniciativa de pedir demissão é minha. Ele deu de ombros e disse que não era o caso, retornando em seguida para o próprio escritório. Ainda, ele acrescentou essa única palavra, de maneira ameaçadora, na soleira da porta, antes de sair. Não entendi como ameaça, mas como renovação das esperanças. Ele iria buscar um jeito de me demitir por justa causa, sem necessidade de pagar fundo de garantia e outros abonos, e eu, de me renovar. O sujeito que precisa de trabalho jamais deveria sequer discutir a palavra liberdade. Ela não lhe diz respeito.

60. Olhos brilhantes

Imagem | Raimonds Staprans

 

Adoro fazer as mulheres chorarem, ele me disse. A imagem aquática em torno do olho feminino é uma das mais belas imagens que já vi, continuou. Era o motivo estético que ele usava para alegar por que as fazia chorar, um tipo de perversidade egoísta com fins supostamente artísticos. Geraldo era perturbado e eu disse isso a ele. É meu colega de trabalho, um tanto abrutalhado, mas excelente parceiro de baralho, de modo que às vezes tolero seus relatos cretinos apenas porque sou viciado em cartas e Geraldo me faz companhia quando vamos a um jogo que temos na casa do Simas a cada quinze dias. Aproveitamos para falar cretinices sem qualquer impedimento. Na maior parte das vezes, tenho saído dessas rodadas no lucro, o que se revelou fonte extra de dividendos. Importante nessa época de vacas magras, com a inflação estúpida que existe no país e que minha experiência de muitos anos ensinou que jamais estará sob controle. Geraldo continuou seu discurso cretino. Sei que causo dor e a verdade é que muitas jamais me perdoam novamente, mas é um risco que me permito correr porque acho que afinal vale a pena. Vê-las de olho molhado?, insisti, porque não estava acreditando naquele relato. Fico pensando onde fui arrumar esses malucos a quem chamo de amigos, mas imagino que todos devem se fazer a mesma pergunta, de modo que devemos estar empatados, no fim das contas.

59. Rescaldo

Imagem | Raimonds Staprans

 

Hoje havia uma vendedora de flores na entrada da estação, Elisa, o que inexplicavelmente me deixou comovido. Acho que estou ainda abalado com o suicídio que testemunhei outro dia. Sei que foi olhar para o cesto de flores da moça — vermelhas, roxas, amarelas — e meus olhos se encheram de água. Me aproximei, secando as lágrimas, e perguntei. Quanto é? Ela me disse um preço que normalmente eu acharia absurdo, porque essas plantas existem naturalmente por aí e ninguém deveria cobrar por elas, que nunca são beneficiárias do comércio que está sendo feito em seu nome. Enfim, paguei. Depois não sabia o que fazer com elas, a quem entregá-las, de modo que depositei na espécie de santuário que alguém, suponho que da família, criou na estação onde desço para ir ao trabalho, em homenagem ao suicida. É essa a sociedade em que vivo. Os suicidas ganham flores e velas — estou surpreso que a administração tenha permitido velas acesas naquele recesso da plataforma —, quando antigamente a Igreja lhes negava sepultura, e os insones traumatizados que presenciaram o gesto extremo são forçados a se lembrar da situação de novo e de novo, renovando as doses de insônia toda vez que descem ou sobem na estação. Tentei não pensar mais no assunto quando coloquei ali aquele buquê de flores, mas ao mesmo tempo tenho cogitado seriamente mudar de trabalho.

58. Um suicida no caminho

Imagem | Raimonds Staprans

 

Nunca imaginei em minha vida que veria a cena de alguém que se joga nos trilhos para morrer atropelado por um trem de metrô. Ontem aconteceu. Tinha saído cansado do trabalho, com vontade de ir para casa, tomar banho, comer alguma coisa, virar vegetal por um par de horas diante da televisão e depois dormir o sono do esquecimento. Mas estava na plataforma à espera quando vi o sujeito se aproximar da linha amarela atrás da qual se recomenda que seja feita a espera. Então, quando o trem se aproximou e não teria mais como evitar o impacto, o sujeito se lançou, primeiro para frente, mas a gravidade fez seu trabalho antes da chegada do aço. Ouvi o barulho de um corpo que atinge os trilhos e depois outro barulho, do impacto do trem sobre o corpo. Ambos sons secos e no entanto como soaram assustadores, arrepiantes. Que o sujeito escolheu morrer, é lá com as razões e motivos dele. Que nos escolha aleatoriamente para testemunhar, obviamente contra a nossa vontade, me parece uma desfaçatez sem tamanho. Talvez nem ele soubesse que estava pensando em cometer suicídio, um pouco como Anna Kariênina no famoso romance de Tolstói. A morte virou dificuldade para a administração do metrô, que precisou interromper o serviço, remover com rapidez o que sobrou do corpo, identificá-lo, comunicar à família, enquanto o engarrafamento se formava lá atrás, maior que a média, com as pessoas reclamando sem saber o que de fato aconteceu. Houve uma nota publicada no jornal de hoje, mas nada a respeito do suicídio. O texto dizia apenas que as circunstâncias da morte estavam sendo investigadas, o que é a mesma coisa que dizer nada. Para mim, que não consegui dormir direito, é ficar pensando até que ponto a pessoa — o jornal trouxe seu nome verdadeiro, que fiquei sabendo — não tomou afinal a única solução razoável para a completa falta de sentido dessa vida ao mergulhar no verdadeiro sono do esquecimento.

57. Certa claustrofobia inevitável

Imagem | Raimonds Staprans

 

Descer as escadas ou escadas rolantes para chegar à plataforma. Ir para baixo, para o subsolo. Saber que, uma vez dentro do trem que entra no túnel, há uma enorme quantidade de terra acima de sua cabeça e abaixo e por todos os lados, será por isso que as pessoas são levadas intuitivamente ao silêncio? A opressão da terra, o fato de que é nela que os cadáveres serão sepultos, de que a terra é a última morada do corpo que se putrefaz, é isso que torna os metrôs tão assustadores a ponto de gerar silêncio? É claro que a pessoa que toma o metrô todos os dias para ir ao trabalho não está mais pensando nisso, se é que chegou a pensar algum dia a respeito. Mas toda vez que a composição em que estou é obrigada a parar alguns instantes dentro do túnel, possivelmente porque está acontecendo algum tipo de engarrafamento lá na frente, sinto que algumas pessoas ficam tensas e retesam um pouco o corpo, como se ligassem os sistemas de alerta para antecipar algum perigo. Já me imaginei tendo que sobreviver depois de alguma hecatombe dentro do metrô, já me imaginei tendo que caminhar por ali entre os trens porque acabou a energia. Além disso, se havia calor lá dentro no momento da interrupção do trajeto, mesmo que pequena, esse calor parece aumentar de uma só vez quando o movimento é interrompido. Não sei de casos de desmoronamento de túnel enquanto o metrô passava por ali, parece que a segurança nesse aspecto é muito eficaz e os engenheiros fizeram um trabalho confiável, mas isso não impede o temor humano, porque sabemos todos que o fato de nunca ter acontecido determinado tipo de acidente não significa que não vá ocorrer um dia. É talvez essa desconfiança que gera o medo e é certamente o medo que silencia, que deixa a todos especialmente quietos, embora também inquietos. Não é fácil pensar em algo para se dizer a um estranho. Mas imagino que seria um bom momento para começar a conversar com meus colegas de vagão.

56. A geladeira

Imagem | Raimonds Staprans

 

Não faço ideia de como ele chegou à plataforma, mas está parado ao lado de uma geladeira branca, maior que ele. Nunca na minha vida imaginei que iria ver uma cena assim. Duvido que tenha tido forças para erguê-la sozinho, no entanto é como ele está, na companhia apenas da geladeira. Como passou pela catraca? Como não foi ainda abordado pelos funcionários da segurança com perguntas a respeito do que está fazendo ali em tão insólita companhia? Roberval está indo para a casa da mãe, dona Iara. Há anos que ela reclama da incompetência do filho. Ele arruma bicos, não trabalho de verdade. E dona Iara adoraria que o filho tivesse emprego de verdade, para o qual pusesse terno e gravata — um modelo diferente para cada dia da semana —, e fosse, lindo e maravilhoso, tomar decisões importantes que influenciariam a vida das pessoas e mudariam o mundo. Mas Roberval é incompetente cuja indolência é gigantesca, maior do que qualquer desejo materno, que há anos se traduz apenas em desgostos. Há coisa de semanas ele arrumou grana ajudando seu Gonçalves a transportar uma mudança. Terminou suado feito um porco, sentiu um cansaço redobrado pelos três dias seguintes, mas descolou um bom dinheiro. E também a chave reserva da nova casa da senhora para quem a mudança foi feita. Vigiou os hábitos da mulher, que dificilmente deixava a casa, mas finalmente a viu sair no carro da filha e do genro, ou do filho e da nora, Roberval não se interessa nem se importa. O que conta é que a casa ficou sozinha e, agora, com uma geladeira a menos. A mulher tinha duas, que diabos, além de um freezer. Para que tanto? De modo que Roberval carregou a geladeira, levando-a nas costas até o metrô (como desceu as escadas rolantes, eu me pergunto) e por uma dessas coincidências inexplicáveis ninguém o parou, conseguiu entrar com ela até a plataforma, onde agora espera o metrô e onde será interrompido finalmente pela segurança, que vai lhe perguntar o que está fazendo uma geladeira justo no metrô, ali não é lugar para transportar objetos de certo tamanho. Levando para a minha mãe, ele dirá.

55. Cheio, vazio

Imagem | Raimonds Staprans

 

Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma, de vez em quando a voz no sistema de som anuncia, pouco antes de o metrô parar na próxima estação. O mesmo recado está escrito em adesivos que ficam às vezes colados próximos às portas. Todos se preocupam com o vão, o vazio, o espaço à espera de ser preenchido. Há um medo do vazio que não se justifica, porque quando se olha para a imensidão de nada e um ou outro astro que constitui o universo, o sujeito é forçado a pensar o inverso, ou seja, que deveriam todos estar preocupados em entender o vazio e talvez deveriam se espantar com o contrário: aquilo que não é ausência. Os físicos dizem que conhecemos menos de cinco por cento de tudo, o restante é uma tal de matéria escura, talvez o vazio elevado a alguma potência gigantesca. No meu entendimento, o aviso deveria ser cuidado com trem e plataforma a cercar o vazio. O preenchido é que é a ameaça. Mas então vi essa mulher, Regina, com uma bolsa muito pequena a tiracolo e ar de quem estava com os pensamentos localizados talvez nos confins vazios do universo, a pesquisar matéria escura. Quando foi se preparar para sair, alguém lhe esbarrou no ombro, tomado pela pressa. A tira fina da bolsa deslizou com facilidade ombro e braço abaixo e a bolsa pareceu se sentir atraída justamente para o vazio entre o trem e a plataforma, o que sugere esse outro tema de força: o poder de atração que o vazio exerce sobre objetos sólidos. Regina me pareceu bem tranquila, enquanto se dirigia a um funcionário com o pedido de resgate da bolsa (e de parte da dignidade que parecia ter deslizado junto para o vão) do chão próximo aos trilhos. Esse tipo de resgate deve ser mais ou menos frequente e envolve pequenos objetos como chaves, isqueiros, anéis, colares que se rompem, todos atraídos pelo vão entre o trem e a plataforma, o vácuo infinito, embora fundamentado por um chão próximo aos trilhos, sólido, composto, duro, resistente, que vai aparar tudo o que passou pelo vão e pelo vazio e pelo espaço entre as coisas.

54. A verdadeira compaixão é entre estranhos

Imagem | Raimonds Staprans

 

O cidadão tem pernas finas e barriga que parece circundá-lo por todos os lados. Entra e começa a distribuir papeizinhos aos passageiros. Vários se recusam a pegar. Sei que é algum pedido de dinheiro, mas não consigo rejeitar o papel. Tenho um prazer estranho com os erros de digitação, de sintaxe, de semântica. Além disso, adoro olhar para as formas das letras nos papéis, se são bonitas ou se são horrorosas, o que quase sempre é o caso. Dessa vez não era diferente. O sujeito, Adolfo, dizia no papel ser surdo-mudo, morar numa cidade vizinha, ter sido assaltado e por isso contava com a solidariedade dos outros para ajudá-lo a comprar passagem de volta. As palavras que usou: conto com sua ajuda e compaixão. Olhei bem para o papel e de novo para o sujeito, que vinha lá dos fundos do vagão para colher a boa vontade ou os papeizinhos de volta. Se havia sido assaltado, como tinha conseguido imprimir e recortar os papéis com todos aqueles erros de português para distribuir entre passageiros? Uma senhora demorou a abrir a bolsa e ele manteve a paciência, mas imagino que por dentro estivesse fervendo. Eu tinha moedas e boa vontade, entreguei algumas a ele. Adolfo na minha imaginação não é surdo-mudo, compreende muito bem o que as pessoas falam, as críticas que fazem a ele pelas costas supondo que não está ouvindo. Mas também ouve as manifestações de compaixão e pesadas na balança as diferenças, vem dando empate e ele não se decidiu ainda se é o caso dar mais um pouco de chance ao projeto humano ou se é melhor fechar tudo e começar de novo de forma diferente. Eu fico à espera inútil de que ele, depois de recolher todos os trocados do vagão, saia na próxima estação e, antes de descer, se vire para todos: obrigado, galera, valeu aí! E depois acena um tchau e se vai, como se não tivesse mais importância revelar o disfarce.

 

53. Vida séria

Imagem | Raimonds Staprans

 

O narigudo entra com uma roupa que me faz pensar imediatamente: é dançarino de tango. O porte, esguio e trágico, confirma. Pablo, suponho. Para ele, o tango é a forma que encontrou de manifestar todos os demônios e qualquer resquício de beleza. O corpo sente palpitações e percebe que nada nesse universo está fixo e ao movimento se pode atribuir duas intenções: desestabilizar e criar beleza. Pablo procura ser sinuoso e quando agarra as costas das parceiras para apoiá-las quando inclina seus corpos em direção ao solo sente que o calor recebido é o mesmo que consegue transmitir de volta. Dança porque não tem remédio, seria isso ou o assassinato, algo que para alguém pobre e sem poder é sempre desvantajoso. Gargalhadas foram banidas de sua vida e os amigos fizeram uma aposta para ver quem conseguia tirar uma foto dele sorrindo, mas a tarefa tem se mostrado impossível. Alguém certamente lhe partiu o coração um dia, mas pouca gente sabe do ocorrido e ainda menos é capaz de fornecer detalhes. A intensidade da entrega, em vez do desprendimento absoluto, foi o que o perdeu. Hoje, julga que a questão está resolvida, costurou o que pôde dos fragmentos que lhe restaram do coração abatido e trata o mundo com a devida distância e seriedade. Quando alguma parceira se mostra interessada em mudar a posição da dança para a horizontal — a tragédia alheia é um afrodisíaco potente —, Pablo não se furta a emprestar os serviços, mas deixa que apenas os corações delas se queimem, o seu não é mais inflamável. Qual o sentido de ficar vivo?, lhe perguntou uma vez seu amigo Lourenço, e embora Pablo não saiba como contestar a essa indagação, também a morte não lhe atrai o suficiente e portanto ele prossegue vivo, sério e desesperançado.

52. Os cegos no metrô

Imagem | Raimonds Staprans

 

Entrou um cego hoje no trem, estava de bengala daquelas que se desdobram, as partes amarradas por um elástico, fáceis de carregar e de guardar quando não estão em uso. Alguém o ajudou a entrar e não sei se ele está fazendo o percurso para ver se aprende e passa a fazer sozinho nas próximas vezes, mas é bem possível que seja isso. O fato é que o cego me remeteu a uma história que li certa vez e que me impressionou muito. É uma pequena anotação que se encontra nos cadernos de notas de Albert Camus, que foi publicado para que os leitores pudessem ter acesso ao pensamento embrionário do autor francês, nascido na Argélia. O texto diz que dois cegos, amigos, encontram-se de madrugada porque é quando quase não há pessoas na rua. Assim, podem encontrar a luz de um poste e rir bastante. Durante o dia, ficam tolhidos pela piedade dos outros. Escrever, diz um cego, não interessa, porque o que “interessa em um livro é a marca de uma existência patética. E nossas vidas nunca são patéticas”. A frase é corajosa e não imagino o que o cego que vi no metrô, Gilson, seria capaz de pronunciar algo semelhante. Gilson é um sujeito simples, cego recente, na fase de aprendizado de como se localizar no ambiente urbano dentro da nova condição. Ele não vai virar fotógrafo, como aquele sujeito que ficou parcialmente cego aos onze anos, István Bavcar, mas ainda vê sombras e durante certo tempo conheceu notoriedade porque conseguiu se transformar num fotógrafo, o que parece absurdo porque só pode ouvir o que os outros dizem de suas fotos, sem nunca poder enxergá-las de verdade. A gente não enxerga só com os olhos, imagino que ele me diria, se me ouvisse falar tamanha asneira. Mas Gilson, ele apenas tateia daqui para ali, tentando se virar sozinho no caminho entre a casa e o consultório do oftalmologista que o atende de tempos em tempos, e que tem falado de novas técnicas, mas sem apresentar realmente esperança concreta para o caso do rapaz ou, ainda mais grave, para o meu caso pessoal de cegueira, que parece o mais incorrigível de todos.

 

51. Vi um escritor na plataforma

Imagem | Raimonds Staprans

 

O fato de eu gostar de literatura me faz ter interesse também pelas vidas dos meus escritores favoritos, embora eu saiba que a vida e a obra por vezes se antagonizam. A questão é outra, porém. Ontem estava na plataforma, à espera do metrô, e olhei para o lado esquerdo. Estou sempre com o radar ligado à procura de pessoas, elas são um estimulante para a curiosidade, é como funciona para mim. Então meu olhar recaiu num velhinho de bigode e jurei que estava vendo W. G. Sebald, o que é impossível, pois ele está morto. O escritor alemão morava na Inglaterra, onde ministrava aulas de literatura e, de maneira considerada tardia, começou a publicar algumas das coisas que escrevia, o que despertou interesse de uma parcela significativa de público, tanto que os livros começaram a receber traduções para diferentes línguas e gerar burburinho. Sebald escreve algo a que se deu o nome de autoficção, ou seja, para dizer de modo bem resumido, ele faz autobiografia mas de vez em quando se permite inventar um pouco a respeito dos acontecimentos. Se fosse apenas isso, talvez ele não passasse de moda literária. Mas o interessante é que ele escreve algo que se situa entre o narrativo e o ensaístico, um equilíbrio que se não for bem dosado pode ser um desastre. E Sebald tem elegância e consistência para se equilibrar bem entre os dois. Era bigodudo e tinha os olhos empapuçados na parte de baixo da pálpebra, como se tivesse passado anos sendo curtido em bebidas alcoólicas. Exatamente como estava o senhor na plataforma, próximo de mim. O que deduzi foi que, tendo morrido aos cinquenta e sete anos num acidente de automóvel, Sebald não sabe que morreu, tanto que continua por aí, fazendo viagens e apresentando conferências. No momento em que o vi, ele havia embarcado para o meu país atraído pela qualidade gráfica e de modo geral por toda a produção editorial dos seus livros aqui. Veio ver o que acontece, quem sabe aproveitando para arrumar mais material para um próximo livro de viagens em que analisa aspectos sociais, antropológicos, fatos cotidianos, genealogias humanas, enfim, qualquer coisa que lhe interesse. Não vou me surpreender se qualquer hora dessas surgir um novo volume com textos inéditos. O que quase ninguém saberá é que não se trata de produção da época em que estava vivo, mas dos textos escritos agora, nessa nova fase pós-morte.

50. Teologia da recusa

Imagem | Raimonds Staprans

 

A mulher ergueu a mão calejada na minha direção com o pano bordado. Pano de prato, senhor? Ela não estava me perguntando se aquilo era pano de prato, estava me oferecendo na intenção de que eu comprasse. Havia dizeres pintados e o bordado ficava nas pontas, uma espécie de franja em rede. Os dizeres anunciavam com uma letra rebuscada que Deus é fiel, pelo que pude perceber. Só não entendi a quem ele devia fidelidade. Sempre me pareceu que Deus está acima do conceito de fidelidade, já que é, supostamente, perfeito e a fidelidade pressupõe que se trata de situação que envolve alguém imperfeito, ou seja, humano. Além disso, a quem Deus iria entregar a fidelidade, caso ela se aplicasse a seu caso? Aos humanos, em todo o imenso e infinito universo? E por que nos teria escolhido a nós, tão imperfeitos e turbulentos e problemáticos (talvez por isso?). Não, nós seríamos uma péssima escolha e supostamente Deus era um sujeito esperto. Além disso, me lembrei de uma frase de um escritor argentino que havia lido há tempos, a respeito de um dos sete pecados capitais. “O cúmulo da soberba é nos julgarmos filhos de Deus”, dizia a frase de Tomás Eloy Martínez, com a qual eu concordei imediatamente, mesmo achando uma gigantesca bobagem toda aquela discussão a respeito da existência ou não-existência do Amigo Imaginário da Humanidade. Recusei a oferta, mas a mulher, Lurdes, com nome e vontade férrea de santa, recusou minha recusa e achou que deveríamos negociar. Eu não conseguia arregimentar qualquer punhado de paciência para começar a explicar àquela criatura os motivos teológicos pelos quais eu me recusava a comprar o pano que contribuiria para a causa que me afrontava a inteligência: portanto ative-me a um mutismo consistentemente ativo e uma recusa consistentemente calada, manifesta com balanços de cabeça de um lado para o outro. Ela podia querer fidelidade divina o quanto quisesse e podia depender dela para ganhar o pão, mas não seria comigo que ia se dar bem, não se dependesse de mim, de minha boa vontade, que naquele momento era apenas má vontade. Eu não era fiel àquela causa, àquela crença. Era só mau humor e recusa. E a não ser que Deus aparecesse pessoalmente para me vender o pano — pensando bem, nem assim — eu poderia pensar no assunto.

 

49. A conquista difícil

Imagem | Raimonds Staprans

 

O sujeito a minha frente era magro e tinha pescoço fino e pomo de Adão pronunciado em algo que parecia camadas de caroços. Não pude evitar de lembrar de um pássaro, um daqueles frágeis e pescoçudos, graciosos apenas no voo, mas aquele sujeito ali não tinha a menor chance de sair voando debaixo da terra. Ele conversava com a namorada ao telefone e o tom de voz me fez ficar em dúvida se ele de fato estava sendo sincero e sofrendo — que era o que se podia deduzir das palavras — ou se estava sendo um pouco cínico e dizendo coisas que imaginou que sensibilizariam a moça. A impressão que eu tenho quando estou com você, Tadeu disse ao telefone, é que sou uma péssima companhia. Imagino que ela tenha confirmado lá do outro lado, porque ele se desagradou profundamente e seguiu-se uma discussão áspera, com trocas de acusações das quais só ouvi e acompanhei uma parte. Não bastasse aquele tratamento um tanto esnobe que ela estava lhe dispensando, ouvi-o acrescentar na conversa com ela que seu time estava perdendo o jogo contra um dos principais adversários e, embora estivesse se referindo apenas ao futebol, pensei se não seria uma metáfora involuntária da situação de ambos. Os infortúnios costumam aparecer sempre em grandes quantidades. Só a sorte prefere o método conta-gotas. No entanto, alguma coisa me dizia que todo aquele sofrimento elaborado de Tadeu era parte de um plano para dobrar a moça e conquistá-la, para então revelar quem ele de fato era. O jogo então seria invertido, bem como o portador das dores que os relacionamentos acabam por despertar.

48. Quando não se sabe que outra coisa fazer

Imagem | Saul Steinberg

 

Ouvindo a mulher conversar com a outra a minha frente, pensei no poder da evocação. Uma delas, a loira cujos cabelos parecem estar escurecendo com o tempo (e não sei como cheguei a essa conclusão se não convivo com ela e não tenho como saber as mudanças que seus cabelos sofrem), Tatiana, explica para a outra alguns dados a respeito da exposição de fotografia que está sendo exibida na galeria em que trabalha. São fotos de grande formato, em preto e branco, de uma região ao norte do Chile, em que ingleses e norte-americanos, se ouvi bem, criaram cidades no período da Primeira Guerra Mundial, a fim de extrair salitre, um componente importante na fabricação da pólvora. Com a descoberta de como produzi-lo sinteticamente em laboratório, não havia mais necessidade de extração, de modo que três cidades foram rapidamente abandonadas e é a situação atual, de cidades fantasma, que o fotógrafo registrou. Tatiana contou essas informações para a amiga, Vânia, como se ainda estivesse na galeria em atendimento a algum visitante da exposição, mas o fato de ainda estar no assunto do trabalho me levou a pensar que era algo que ela gostava de fazer, a ponto de não se desligar dele de forma automática enquanto se dirigia para casa — ou seja lá para onde estivesse indo naquele momento — e continuar falando a respeito do assunto. Não sei se Vânia estava realmente interessada na conversa ou se estava sendo gentil de não interromper até que pudesse mudar de assunto sem parecer apressada. Mas confesso que gostei de ouvir e fiquei imaginando o que exatamente as fotos conseguiam mostrar: casas desabitadas, ruas inteiras um deserto só e escombros, cobertos de poeira, lixo e ruínas, caixas d’água certamente secas, velhas piscinas abandonadas cujos ladrilhos desmoronaram parcialmente, talvez até mesmo um velho cemitério no qual o abandono se manifesta por meio de tumbas envelhecidas e, numa delas, é possível ver parte da perna mumificada e um sapato puído, embora também parcialmente preservado. Depois me dei conta que talvez eu tenha uma consciência excitável demais e talvez a exposição nem seja assim tão impactante. Mas penso na trabalheira do fotógrafo, carregando o material, montando o equipamento, registrando no momento em que a luz está adequada, pensando na sua solidão e no abandono do lugar, depois desmontando, voltando de viagem, ampliando as fotos em grandes formatos para aumentar o impacto das imagens. E isso tudo para poder coçar apenas a superfície das questões que realmente o incomodam e que nem Tatiana, nem Vânia, nem eu, nem ninguém saberá quais são.

 

47. O túnel, a solidão, persistências

Imagem | Yann Argentin

 

Há um ritual de gestos públicos que é preciso assumir quando se está no metrô. Embora certa quantidade de amigos em geral se permita certa expansividade, o que predomina é a contenção. Por isso durante muito tempo as pessoas se permitiam ler, esse modo de mergulhar a consciência em outra parte enquanto se está em público. O ato da leitura foi substituído pelo uso do celular, mesmo efeito, mas o mergulho agora é em várias frentes diferentes e, às vezes, além da visão mobiliza-se também a audição, com fones de ouvido que permitem ao sujeito escutar música. A questão é que por algum motivo as pessoas não querem ficar simplesmente olhando umas para as caras das outras ou para as paredes escuras de concreto dos túneis subterrâneos e a verdade é que não se pode querer condená-las por isso. De algum modo estranho, talvez essa escuridão remeta aos recessos subconscientes da mente, com trechos vazios e escuros, e por isso o incômodo de não querer olhar para aquilo diretamente. Há dias, como hoje, que em vez de contar histórias a respeito dos passageiros, que são meus colegas de viagem — a curta, que dura o tempo em que compartilhamos o vagão; a longa, por estarmos vivos na mesma época —, começo a fazer essas reflexões que saem mais ensaísticas do que eu gostaria. Me inquieta pensar, por exemplo, nas parcerias que se fazem. A aproximação entre pessoas é feita mediante uma série de gestos, palavras, trocas de olhares, proximidades intensas e recessos de afastamento. Mas quando se pensa a sério a respeito do que está aproximando uma pessoa da outra, o que há nisso de tomada de consciência e o que há de instintivo e de teleguiado pelas demandas da natureza, parece haver um grande descompasso no projeto humano como um todo, mas isso nunca impediu a constante manutenção da cópula e da continuidade a ela associada, ou seja, estou falando do crescimento populacional. A solidão parece um grande dilema humano e por conta disso é o tempo todo lembrado. No metrô, a solidão parece uma impossibilidade, embora muitas pessoas se esforcem  para demonstrar isolamento. A solidão, mesmo, é muito menos uma ausência de convívio momentâneo com outros e mais a noção da impossibilidade de partilhar as mesmas emoções com outra pessoa. Por isso se desenvolve a simpatia, a afinidade eletiva, o compartilhamento verbal ou físico (dança, sexo, esportes). Isso minimiza o impacto real da verdadeira condição, por isso as pessoas tendem a se agarrar a essas tábuas de salvação, na esperança de não sentir tanto o quão avassalador é o afogamento. Aceita-se aquilo que é oferecido e lastima-se uma ou outra condição — o trabalho chato, o chefe exigente, as férias curtas, o excesso de filas para tudo, os desmandos do governo, o silêncio da sociedade, o preço elevado dos produtos e a necessidade de intermediar as relações com posse financeira etc. etc. —, mas o fato é que somos todos seres de vasta persistência.

 

46. Lei das compensações

Imagem | Thor Wickstrom

 

A ele, Carlos Souza, falta uma perna e sobra um amor. Se bem que dito assim parece que o amor sobra, quando no geral as pessoas acreditam que ele sempre vem na medida exata, ou até mesmo um pouco menos que o necessário, o que em geral desencadeia fome de mais amor — aí também o apetite parece insaciável. De modo que é bom dizer de outro modo: o amor está no tamanho devido para Carlos. Mas ainda assim lhe falta uma perna e faltará sempre, embora a prótese lhe proporcione a mobilidade que se espera de uma perna. Portanto ele se desloca por aí com amor e prótese na medida, inclusive no metrô, onde os vi caminhando lado a lado, um a proporcionar o apoio de que outro talvez precise em ainda maior quantidade do que se Carlos tivesse as duas pernas por inteiro, para compensar essa ausência com a qual se aprende a viver, de um jeito ou de outro, mas sempre que se vai por aí em meio às pessoas elas olharão com algum tipo de estranhamento e, no mínimo, interesse. Como eu, disfarçando, tanto quanto possível, mas fazendo questão de olhar sempre que imagino que não conseguirão notar. Se fosse teórico europeu, estaria falando da impressão causada por essa ausência como sendo estranhamento, ou a percepção da outridade do outro ou qualquer blablablá parecido. Mas o que realmente me move é o fascínio, o deslumbramento com a ausência perene, suprida por um objeto e um grande amor, esse sim o que dá a verdadeira dimensão das coisas. Quando o médico lhe perguntou o que gostaria de fazer com o membro amputado, ele pediu tempo para pensar. Avaliou em silêncio as opções oferecidas e decidiu-se pelo sepultamento da perna numa caixa. Parte dele estava morta e já ficaria enterrada. Tentou fazer piada, dizendo que a morte estava chegando a prestação, mas acharam mórbido e ninguém riu. O restante iria mais tarde. Como vejo realmente, me parece que a felicidade montou acampamento do outro lado da rua. Percebo nos dois o esforço para encenar uma felicidade decorrente da ideia de superação. A sós, o silêncio os corrói, a encenação não se sustenta. Amor é idealização, o emblema para ser exibido em público. Mas não é possível viver a vida inteira em público. Porque aí sim, talvez a história vingasse.

45. Longa espera

Imagem | Stephen Stoller

 

Ela subiu na estação seguinte a minha, era magra, tinha cabelo curto e namorado a tiracolo. Eles ficaram em pé porque não havia onde se sentar. Só quando desceram, três estações mais tarde, notei a tatuagem na parte de trás do braço dela: uma máquina de escrever com todas as teclas redondas, modelo antigo. Ela se chama Isabel e sempre quis ser escritora, desde que se entende por gente (nota: não sei o que a frase “desde que se entende por gente” realmente significa, uma vez que a autoconsciência tem caminho próprio e tempo certo para se manifestar. Seja como for, não resisti à tentação de usar uma dessas frases de lugar-comum). Criava histórias em sucessão e boa parte delas tinha finais trágicos, grandes explosões, mortandade generalizada. A atenção para os detalhes veio mais tarde, na adolescência, e personagens com psicologia complexa chegaram à beira da vida adulta, onde ela está agora. A carreira literária, no entanto, ainda não deslanchou, não é fácil enviar originais às editoras no Brasil, simplesmente porque elas nem dão conta da vazão daquilo que já existe, que dirá do que ainda se apresenta como novidade — ou nem isso. Uma hora ela se cansou do silêncio malévolo e parou de enviar textos, micro e macro romances, novelas, um livro de ensaios literários, todos muito bons e consistentes, segundo sua avaliação pessoal, mas como ninguém se dá o trabalho de ler com a devida atenção, as coisas estão em suspenso por enquanto. De qualquer modo, leve o tempo que levar, ela continua a escrever e isso é o que realmente conta, embora um pouco de interlocução com os leitores não fosse mal negócio. De qualquer forma, algo acontecerá, em algum momento. E os entrevistadores lhe farão perguntas a respeito da tatuagem com a máquina de escrever. Com um sorriso entre irônico e maroto, ela dirá: eu sabia e por isso. A frase ficará com aparência de inacabada, mas todos compreenderão o recado.

44. Seres da noite

Imagem | Shane Sutton

 

Trata-se de sujeito grandalhão, mas jovem. Estou voltando do trabalho numa sexta-feira, depois de ter ido encontrar velhos amigos do ensino médio para uns goles e o antigo jogo do que você anda fazendo por esses dias e como era boa a nossa vida naquela época. Então peguei um dos últimos metrôs da noite e de repente entra o sujeito. Ele é grandalhão, como eu disse, meio desajeitado e veste uma longa capa negra, uma espécie de sobretudo, cartola estilizada, um pouco mais curta do que a tradicional, meia arrastão nos braços, bota também preta, com plataforma alta. Tem colar feito de dois triângulos entrecruzados para formar uma estrela e ele fica ajeitando esse colar o tempo todo, usando o vidro das portas como espelho. O último toque eu só percebo quando passo por ele, que está de pé, para sair: há uma base de maquiagem no rosto largo e lentes de contato que tornam os olhos vermelhos. O efeito é realmente assustador, embora no metrô não passe de certo teatro do mau gosto. No resto dos dias, ele é Juvenal, assistente de entregas de uma grande loja de material de construção. Quando chega sexta, no entanto, ele se transforma nesse ser da noite, Vodu X, um nome tão pomposo quanto seu ego inflado. Mas não se trata de festa, ou melhor, não para ele. Para Vodu X é trabalho: assustar os clientes de um novo parque temático que virou moda entre jovens de classe média. E um ou outro passageiro do metrô no caminho para o trabalho.

43. Torneira das tormentas

Imagem | Saatchi

 

Há essa imagem a que normalmente se recorre quando se toma chuva: encharcado até os ossos. Mas ontem, quando cheguei ao metrô estava com a sensação de que em mim o que estava encharcado era o coração. Primeiro, porque Marcela me deixou, depois porque fui ao bar sufocar as mágoas. Por fim, estava chovendo e a água se misturou ao álcool e às lágrimas para criar um lago estranho. Sinto que às vezes me volto muito mais para meus problemas e dilemas do que para a observação do que se passa em volta. Gostaria de pedir desculpas por esse deslize, mas quando a vida me ataca de assalto tenho dificuldade de lançar o olhar para fora. Isso posto, quero falar mais um pouco a respeito de Marcela, se me permitem. Achava que estávamos numa ótima relação, claro, com uma ou outra rusga aqui e ali, mas nada grave e o importante é que era algo baseado em companheirismo e compreensão mútua, mas qual não foi a minha surpresa quando ela me lançou as fatídicas palavras: precisamos conversar. Isso em geral quer dizer uma coisa ou outra: ou a relação está com problemas e um freio de amarração precisa entrar em cena, ou a crise atingiu o ponto de não retorno e não há algo que os envolvidos possam fazer. Na gíria dos dias de hoje, esse barco já partiu. O nosso era o cais abandonado em que estou sozinho e fiquei surpreso com a velocidade com que ela juntou as coisas que havia espalhado pelos cômodos do apartamento e se foi, abrindo sobre mim a torneira dos tormentos e essa sensação de que nunca mais conseguirei me recuperar novamente. Em quem apoiarei agora que ela se retirou? Quem vai ouvir minhas queixas e me apresentar sugestões, com quem vou compartilhar as opiniões que tenho? A quem ajudarei quando ela estiver precisando? A quem vou lançar também sugestões e apoio? Éramos uma via de mão dupla. Marcela era meu Norte e Sul, meu Sol e Lua, o Avesso e o Direito e sei que estou precisando interromper esse fluxo de muro das lamentações, mas as coisas estão jorrando para fora de mim, não tenho comportas para conter toda essa água, esse uísque e o sal.

42. Dinâmicas de grupo

Imagem | Nigel Van Wieck

 

O metrô funciona à perfeição para duos. Uma pessoa se volta para a outra e eles interagem, até porque é quase sempre essa a disposição das cadeiras, duas lado a lado. Mas às vezes os grupos se apresentam aí também e as dinâmicas se alteram, formam-se quintetos ou trios, alguns raros septetos, mas às vezes ocorre. Ontem flagrei um grupo assim no meu comboio e quase fui à loucura tentando anotar o que diziam, aquele fluxo intercalado e sobreposto de vozes. Depois, em casa, tentei destrinçar o emaranho de garranchos e concluí que aquilo tudo era insânia. Preciso refletir bastante ainda a respeito da dinâmica das múltiplas vozes antes de me arriscar a compreender o que exatamente significou aquele momento de ontem. Perturbação do silêncio não comporta. Ruídos acima da média me parece pouco. Certa beligerância surda era inevitável de parte a parte (os outros que não fazíamos parte do grupo), mas o fato é que terminou em pouco tempo. As pessoas ficam paradas enquanto estão sendo transportadas, mas não suas vozes, que por alguns breves instantes parecem se rebelar, nas conversas pessoais. Talvez seja algo por aí o que me escapa exatamente de entender a dimensão da coisa.

41. Manual da felicidade

Imagem | nato

 

Paciência, perseverança e desprendimento são a tríade que aponta para o caminho da felicidade. O velhinho que usava uma espécie de bata que lhe deixava os braços soltos, bem à vontade, parecia estar conversando com o discípulo. O outro sujeito era franzino. Embora estivessem ambos de costas para mim eu percebia as discrepâncias e seria capaz de apontar que o mestre pontificava sobre uma protuberância na região da cintura. Ele devia ter, supus, uma barriguinha. Efeito de chope? Teria ele conseguido aplicar para si as regras que propugnava para a felicidade alheia? Talvez. Eu faria uma aposta no discípulo franzino, Aristides. Havia nele algo de relaxado que normalmente não se encontra nas criaturas magras e discípulas. Ele era promissor e talvez detivesse no fim das contas mais algum segredo que escapava inclusive ao mestre. A felicidade é uma desgraça, disso eu sei, desde que o homem se pôs a pensar que ela estava num horizonte possível. Talvez fosse o recado do mestre quando falou em desprendimento: não de nós em relação a posses ou bens materiais, mas de nós, de cada um de nós, em relação à própria felicidade. Uma vez que se consiga desistir de querê-la, ela se entrega a você. Mas o manual que ensina como se faz para abdicar da busca ainda está por ser escrito e a julgar pela tranquilidade daqueles dois a minha frente, o texto não ficará pronto nem tão cedo.

40. Deslocamentos livres

Imagem | Mawra Tahreem

 

E se de repente a humanidade deixasse de ser tão sedentária? Eu sei que uma parcela grande do planeta se deslocou bastante ao longo do século vinte, mas o que eu quero dizer é outra coisa: se todos, rigorosamente todos, decidissem que não podem mais ficar presos a rotinas e a decisão de nos movimentarmos tomasse conta do ambiente mundial? Se, numa só tacada, as fronteiras fossem abolidas e as pessoas não só tivessem autorização para se movimentar livremente, mas todas as tarifas dos meios de transporte, quaisquer que fossem, se tornassem inexistentes?  Para onde você iria em primeiro lugar, amiga?, perguntou a moça, Beatriz, para a outra a sua esquerda, Flávia, tão jovem e imaginativa quanto podia parecer. Eu começaria por Londres, depois Berlim, Flávia respondeu. Mas como ia ser com alojamento nesses lugares e com empregos?, ela continuou, fingindo um desespero exagerado. Não, prosseguiu, esse negócio não ia funcionar. Ah, a primeira lastimou, mas bem que podia, não aguento mais as muitas rotinas da minha vida, as repetições, isso está me pondo louca. É, amiga, Flávia disse, mas se você ficar viajando e viajando, isso também vai ser uma rotina e um inferno do mesmo jeito. A outra suspirou, conformada. A amiga tinha razão. Era uma espécie de dilema insolúvel, que obviamente não resolveram quando se levantaram para descer na estação que queriam. Mas que põe a gente para pensar, quanto a isso não resta dúvida.

39. A selva lá dentro

Imagem | Matthew Grabelsky

 

O sujeito tinha uma daquelas expressões de debilidade. Sem perceber, ele deixa a parte de baixo da boca um pouco caída, o que lhe confere aparência de pateta ou de alguém com dificuldade de respirar pelo nariz. Fica em pé, todos os assentos estão tomados. Deposita a pasta no chão e a prende entre as pernas. Dobra-se sobre ela, retira um jornal que também está dobrado e assim permanece quando ele se endireita e se põe a ler. A outra mão agarra-se à barra amarela acima da cabeça para que consiga manter o equilíbrio. Lembrei-me de um escritor londrino, Will Self, que, observando seus semelhantes ingleses apoiando-se  em barras semelhantes, decidiu compará-los a macacos pendurados em galhos. O livro se chama Grandes símios e tem uma sátira debochada da espécie humana como um todo. O fato é que aquele cidadão ali na minha tangente, Simão, com atitude abrutalhada, se qualificava perfeitamente, até no nome. A não ser pelo jornal, que duvido que ele consiga ler e apreender o conteúdo enquanto tenta manter o equilíbrio. Deve estar se exibindo para a moça sentada próxima a ele. Por sinal, ela não é particularmente bonita, mas consigo compreender o que o atraiu, uma apetitosa e cheia de volúpia comissão de frente. O comportamento sexual de um símio, com o disfarce de intenções do ser minimamente civilizado. Ou será que a volúpia está em mim, o grande primata, não no orangotango que a olha com gulodice e disfarce? Fato é que agora Simão está grunhindo alguma coisa para ela, que de onde estou não consigo ouvir direito o que seja. E para meu grande desgosto, ela não apenas responde, mas o faz com entusiasmo mal disfarçado, o que me desgasta ainda mais. Hoje, decididamente, é excelente dia para grandes primatas da floresta urbana.

38. Antipatia gratuita

Imagem | Kija

 

Em geral, tagarelice é vista como grave defeito que acomete as pessoas, mas no caso desse meu projeto, ela é essencial para o sucesso. Preciso estar perto de pessoas tagarelas, se possível atentar para o modo como falam, entonação, gestos. É dessa observação cuidadosa que virá o ouro das narrativas que desenvolvo. Portanto, em princípio sou favorável à tagarelice. Por isso mesmo não sei muito explicar o fenômeno que de vez em quando ocorre: o desgaste, o incômodo que certas pessoas conseguem provocar em mim, e a troco de nada, a partir de rigorosamente nada. A mulher estava conversando com o cara a respeito de trabalho — lá na firma temos isso, falta aquilo, o chefe ontem, a turma decidiu então, depois disso eu não quis mais saber de — e não sei, algo me desagradou de maneira profunda. Consigo me convencer de que, de modo geral, sou um cara bem tolerante, aberto às diversas vozes e narrativas que cruzam o meu radar. Mas aquela mulher, Renata… Identifiquei um pouco de estridência na voz dela, fato, entretanto não foi isso o que me deu ganas de esganá-la. Havia certa coqueteria no modo com ela lançava charme na direção do interlocutor, um sujeito barbudo e de rosto redondo em que brilhava estampada na testa a palavra cretino em letras garrafais, embora o nome que consta da identidade seja Rodolfo. Cretinaço, suponho que ela não saiba disso ainda. Seria esse o motivo? Creio que não, o fato de que ela parecia tão interessada em agradá-lo, aliado ao fato de que ele estava planejando dar algum tipo de golpe nela, não sei de que dimensões, deveria ser suficiente para aguçar minha boa vontade. No entanto eu continuava incomodado, diria mesmo que irritado, com a particular tagarelice daquela senhora. Não é também — outra hipótese que descartei — o fato de que ela dizia todas aquelas coisas com descomunal autoconfiança, como se tivesse absoluta convicção de que se o mundo girasse sob suas ordens as coisas não estariam tão bagunçadas. Pensei que talvez pudesse ser isso, mas a verdade é que adoro autoconfiança, sou fã da arrogância quando ela é consistente, de modo que não poderia ser esse o motivo do desgaste que eu estava sentindo. E sinto muito terminar esta história sem qualquer explicação minimamente razoável, porque afinal não resolvi a charada. O que posso dizer é que desci do metrô antes dela e ao passar a seu lado não me contive e disse, senhora, eu te odeio. Ela ficou estarrecida com a gratuidade daquela manifestação virulenta, virei-me em direção às portas que se abriam e fui embora, para nunca mais encontrá-la, quero crer.

37. Alegria e cabelos azuis

Imagem Hillel Kagan

 

Você não sabe nada da vida, não sabe de nada, acusou uma moça. Viveu dentro de uma bolha, numa redoma que te preservou de enfrentar a vida de verdade. A outra, que tinha os cabelos pintados de azul, rebateu. O fato de eu ter vivido bastante tempo debaixo da superproteção dos meus pais não significa que não vivi, disse. Você ainda é uma filhinha de papai até hoje, Isabela (talvez o nome seja grafado com z, ou tenha dois ll, mas tive que fazer uma opção). Você não sabe o que é a vida. E você sabe, Bia?, Isabela rebateu. Por acaso só porque sou feliz, minha vida foi boa e fácil, eu não conheci a vida? Pois acho que dei sorte de ter pais amorosos e uma vida de qualidade que eles me proporcionaram e por isso cresci um ser humano feliz e bem resolvido e não me arrependo de nada. Acho inclusive que todo mundo devia ter tido oportunidades como as que tive, mas só posso lamentar que não seja assim para todo mundo. Porém, ela continuou, empolgada com o argumento, a culpa por isso tudo não é minha, não fui eu que criei o mundo nem a injustiça que existe nele. O que eu quero deixar claro, ela prosseguiu, é que não vou me sentir culpada pelas oportunidades que tive nem vou ficar triste por ter levado uma vida feliz, se é a felicidade que me ajuda a me definir como sou. A outra não acrescentou qualquer coisa e as duas permaneceram em silêncio até descer. Fiquei pensando a respeito das coisas que ela disse e no fato de ela ter os cabelos azuis.