exílios

foto | richard gubbels

 

 

é preciso encontrar o seu ponto neste mundo, ele me disse. é disso que se trata, no fim das contas, de ter um lugar onde você se sinta confortável, onde possa ficar à vontade. todo mundo quer preencher as lacunas.

entendo, eu disse. e realmente achava que o estava entendendo. passei mais da metade da minha vida sentindo-me exilado dentro do meu próprio país, um expatriado que temia sobretudo os domingos, quando a zona de desconforto aumenta.

ele prosseguiu: tem gente que passa a vida inteira à procura disso, pode ser um trabalho, mulher, família, amigos ou tudo junto, um ponto de referência e apoio que o ajude a se sentir equilibrado. a maioria das pessoas, mesmo sem saber, procura instintivamente por isso. a sensação de pertencimento. uma matemática cuja conta não é tão simples de fechar.

eu não podia concordar mais com aquele cara, e continuei concordando, mesmo quando me afastei do espelho.

 

música para ninar pássaros

foto | quentin shih

 

 

amaram-se perdidamente (existe outro jeito?) durante muitos anos. não mostravam descuido, nem uma em relação a outra, nem a todos em volta. disciplina e sagacidade, inteligência emocional em alto padrão. exemplo. sim, eram isso, exemplo. impossível copiá-las, ser feliz e compreensivo e sagaz e inteiro. impossível, foi a conclusão. restava aos outros, o resto da humanidade — ou a pequena parcela das pessoas que as conhecíamos — admirar e fazer comentários.

se fosse produzir resumo, diria que elas foram responsáveis por fazer da vida obra de arte, essa meta pregada no horizonte, nunca alcançável. elas alcançaram, aquelas duas apaixonadas.

tive que fazer o resumo, no funeral de ambas, mortas num acidente automobilístico que parecia interromper o andamento da beleza no mundo e provar que o inesperado vence a perfeição. afinal dei jeito de interpretar como culminância estranha e absurda, entanto factível, do projeto de vida como arte. os presentes choraram quando disse isso, sinal talvez de que acertei.

não bastasse, foram enterradas lado a lado, como nas histórias de amor perfeito.

 

tramas ou traumas

 

 

histórias têm sempre algo que escapa, não se desenvolve, mas poderia. embora na aparência exista linha bem definida, centro nervoso em torno do qual (ou rumo ao qual) a história se forma e para aonde se dirige, nada impede o narrador de fazer pausas e abrir parênteses ou colocar notas de rodapé e iluminar algum canto que permanecia escuro.

o autor deixa claro, portanto, que toda história é na verdade emaranhado de tramas que escolhe organizar — e que tenha escolhido uma para desenvolver não significa que as demais não tenham importância. talvez falte a elas o mesmo apelo da história-mestre, mas ainda assim são boas o suficiente para receberem menção entre parênteses ou nas notas de rodapé.¹

 

¹ esta é uma nota de rodapé que não desenvolve qualquer argumento extra, serve apenas para ilustrar graficamente o que se disse no texto principal (mas é claro que, por isso, torna-se argumento extra).

 

fácil

 

 

carro é como envelope, dispositivo para transportar correspondência de um lado a outro. a diferença é que os humanos entram voluntariamente e enxergam o trajeto diante de si.

não sei bem por que me ocorreu a comparação da correspondência para falar de automóveis, até que me dei conta do sujeito que estava ao meu lado, no banco do passageiro, aonde havia entrado voluntariamente.

eu precisava fazer queima de arquivo e deve ter sido este o motivo da associação.

 

revelações

 

 

gosto do jeito como as duas mulheres baixam a voz para confabular a respeito do velho conflito amoroso da humanidade.

trocam experiências, dicas, táticas que as mantém no controle desse poder subterrâneo — exatamente o que impediu o mundo de ser destruído pela agressividade masculina.

o amor é pauta feminina e ter conseguido inocular o coração dos poetas é o verdadeiro trunfo das mulheres.

 

livro secreto

 

 

havia um livro que provocava suicídio em quem o lesse. detentor de impressionante força destrutiva, conhece-se apenas um punhado de homens que resistiu bravamente e não se matou terminada a última página.

quando a leitura daquele título foi terminantemente proibida, houve muitos suspiros aliviados. mas então, após o decreto, as pessoas começaram a perder a fé de maneira irrevogável e um impasse se instalou: o livro deveria ser liberado e permitir o sacrifício de parte da humanidade (os que o leriam) para que a outra parcela vivesse com fé e em paz, ou continuaria proibido e eventualmente ameaçaria a extinção da espécie, de qualquer forma?

a segunda opção prevaleceu, como é de se imaginar.

 

certas línguas

 

 

toda língua que desaparece aponta, mesmo que por breve momento, para a língua silenciosa dos mortos — que diz apenas o que os mortos podem ouvir, vedada que está do domínio dos vivos.

línguas que morrem assombram línguas vivas: apontam para o futuro de cada uma delas, o mesmo cemitério comum, mesmas lápides. são lembrete de que línguas levam mais tempo que seres humanos que as usam, mas também crescem, se reproduzem e morrem.

línguas que se aproximam da morte apontam para o limiar entre-mundos e abrem breve brecha — raramente aproveitada — para que se escute a língua dos mortos, o sussurro de um segredo terrível e plácido. mas dizem que apenas pessoas moribundas têm ouvido suficientemente aguçado para captar.

 

leituras

 

 

abro o livro de italo calvino chamado se um viajante numa noite de inverno e estou sozinho num café. não preciso gritar a alguém, na sala, que não quero saber de televisão porque prefiro ler o romance. leio e me dou conta, neste preciso momento, do quanto essa leitura me deixou feliz. penso em gritar para a sala do mundo: caralho, como estou feliz de poder ler esse livro.

depois penso que pode ser efeito da quantidade de café ingerido, que alterou a adrenalina e me provoca euforia.

leio e sublinho uma frase: “um plano perfeito, tão perfeito que bastou uma complicação mínima para mandá-lo pelos ares”. pretendo usar o trecho — ou o conceito embutido nele — num romance que escrevo, e em cujo primeiro capítulo faço meu personagem — que tem nome — se encontrar com o personagem do livro de calvino — que não tem.

sou um homem feliz numa história sem drama.

 

a volta do aviso

aviso breve: apenas para lembrar que ao longo desta semana, de amanhã, segunda (19), até domingo (25), as histórias do blog estarão relacionadas, não apenas pelo mesmo tipo de fotos, todas de mulheres, mas pelo tema comum: leituras, livros, escritores, esse negócio todo. espero que gostem.

 

p.s.: não se esqueça que aí embaixo tem uma história de hoje.

 

impossível continuar

 

 

no meio da cirurgia o médico disse esse coração aqui já era, vai continuar batendo, mas é impossível esse cara se apaixonar de novo.

por que perguntou a enfermeira assistente, uma senhora de meia idade, completamente casada, parcialmente feliz, inteiramente interessada no que o médico acabou de dizer.

está vendo esse músculo aqui o médico perguntou, é ele o responsável pelo amor e, no caso desse sujeito, está completamente atrofiado. não tem conserto.

então é melhor matá-lo de uma vez e dizer à família que ele não resistiu à cirurgia a enfermeira disse.

 

íntimos

 

 

tomai e bebei, esse é o líquido da vida, tripudiou, enquanto apertava a mão em torno, para ajudar a espremer para fora.

catupiry, manjar de coco, geleia de baunilha, ela riu. dolores fez juz ao nome: estava dolorida e com marcas de mordidas pelo corpo. a semelhança com a arcada dentária dele não era coincidência. 

e se você não fosse trabalhar hoje?, ela pediu.

vou dizer o quê, quando ligar? que estou doente? esgotei essa cota de desculpas.

diz que o céu está lindo, o sol brilhando e que é um crime trabalhar em escritório com um tempo desses.

aí me demitem, para que não precise mais ficar trancado no escritório quando o dia lá fora está tão bonito.

aí você pode ficar trancado aqui em casa comigo.

ser canibal, te fornecer proteínas do líquido da vida.

puseram roupa, foram trabalhar. 

 

revides

 

 

1. no teatro

sujeito ao lado puxa celular e começa conversa eletrônica. retiro objeto dele, de supetão, e atiro longe.

— por que você fez isso? — ele nem fala baixo.

eu, sim.

— estava me atrapalhando.

 

2. no cinema

sujeito entra na sala quando falta um minuto para começar trailers. antes de ocupar assento, avisa aos presentes:

— tenho um saco de m&m e se algum celular acender a tela, vou atacar a cabeça do dono com torpedo (sacode os m&ms).

depois, feito john wayne, caminha até a poltrona.

 

história agridoce

 

 

foi num desses dias em que muita coisa se passa e ao mesmo tempo, nada permanece — um dia de inutilidades acumuladas simplesmente para serem esquecidas, os entulhos da existência.

doris sorriu ao ouvir o cara chamá-la de flor delicada. entendeu como elogio, quando ele quis dizer que a rotação de doris, o empenho dela deixava a desejar. doris era frágil, voz suave, movimentos lentos e meditados, enquanto o sujeito era estressadinho, bruto, ríspido, como se algo o açulasse. o conforto de doris encontrou adversário no empenho do rapaz.

se insistissem em se ver, era apenas para provar que aqueles que não são feitos um para o outro também têm chance, nesse mundo grande sem porteira.

 

suave

 

 

acordou do cochilo do nada com boca seca, uma ardência no céu da boca e um vulcão em miniatura a cozinhar lavas no estômago.

porém, todos esses sintomas físicos eram ar perto do que sentia na cabeça, a completa sensação de ter levado a vida inteira para admitir que os pequenos fracassos parciais nem eram tão sólidos a ponto de estabelecer um grandioso e importante fracasso final completo.

ou seja, mesmo para fracassar ele era um fracasso.

 

o medo do escritor diante do vazio

 

 

um escritor senta-se à cadeira e liga o computador. ele sabe que precisa ter uma ideia e escrever uma história, mas está vazio de narrativas e isso o angustia. tenta reler algumas velhas histórias nunca publicadas para ver se aproveita e reescreve algo, mas está desestimulado.

ele sabe que não se trata de bloqueio de escritor — a incapacidade de escrever em geral. é apenas um dia ruim, um dia em que não se sente com vontade de escrever.

tenta alguns truques óbvios: descrever alguém, contar uma situação abstrata e se fixar nos detalhes do ambiente (cortinas, cor dos móveis), depois tenta o truque de misturar cores e sons do lugar aos pensamentos do personagem. mas é tudo bobagem, ele sabe. a história precisa de um centro nervoso, um núcleo em torno do qual as coisas acontecem. sem isso, está condenado ao fracasso.

o escritor suspira, sente falta de umidade, isso pode estar prejudicando a existência de ideias. ele podia sair de casa e tentar um truque novo. vai beijar à força a primeira mulher que lhe passar à frente, não importa se feia ou bonita, jovem ou velha, sozinha ou acompanhada. a partir daí, ele sabe, alguma coisa vai acontecer e terá o que contar depois, quando e se voltar para casa. no entanto, decide, se for um homem a primeira pessoa que encontrar, vai lhe dar um soco. talvez, elabora, se for um casal, beijará a mulher e socará o homem, não necessariamente nessa ordem. na hora resolve.

ele abre a porta e sai e eu diria que tem certo sorriso maligno, mas talvez eu esteja exagerando.

 

lições de arrependimento

 

 

i

— tá vendo, neném, você não quis ir no brinquedo aquele dia.

— acabou, mamãe?

— acabou.

 

ii

— o que você está fazendo com essa mulher?

— você não quis se separar do seu marido e eu estava me sentindo muito sozinho.

 

iii

— não me arrependo de nada do que já fiz.

— e do que você já disse, não se arrepende? isso que você acabou de dizer, por exemplo, francamente.

 

não rir

 

 

teobaldo foi acometido de uma doença que o impede de rir. ele tem amigos, é bastante sociável, conta e ouve piadas, mas sempre com a mesma máscara de buster keaton em cena, impávido. perto dele, mona lisa é uma pândega.

rio por dentro, ele explica. é o que me restou.

pare de reclamar, mário lhe diz. estão numa roda de conhecidos, em volta de chopes que esquentam nos copos diante deles, lentamente. é bem melhor não rir do que ter uma doença séria, que lhe paralisa numa cadeira de rodas.

comparativamente, pensa teobaldo, faz sentido. mas não estou paralisado, estou impedido de rir.

os amigos param de convidá-lo aos poucos, porque ele não ri. isso acaba estragando um pouco o clima entre eles. teobaldo pode até fazer força, os amigos podem sentir certa piedade, mas o sentimento de grupo, de preservação e sobrevivência, faz com que excluam teobaldo das rodadas do que seja. ele é relegado porque não ri. no cinema, com buster keaton, faz sentido. na vida real é um saco.

teobaldo pensa, por alguns instantes, se não seria melhor estar paralítico.

 

sentimentos

foto | andreas gursky (alterada: instagram)

 

 

na escada rolante (subindo) uma mulher diz a outra:

— eu tive um sentimento muito grande de tristeza.

falou aquilo como quem dissesse que moveu uma xícara de lugar. o sentimento, se de fato existiu, estava no passado durante o relato, que é objetivo feito matéria de jornal.

lá no alto, quando já saíram da escada, percebo que falam de outra mulher. a mesma que lamentou a tristeza diz:

— aí ela me chamou para sair e eu fui. sou facilmente corruptível. minha tristeza não dura.

— bom para você — respondeu a outra.

 

fotógrafo diferente

foto | robert frank

 

 

ele fotografou o próprio enterro. estava preocupado. as pessoas compareceriam? ele seria lamentado? sentiriam sua falta?

fato é que essas coisas aconteceram, mas talvez ele tenha se esquecido de fazer a pergunta fundamental, porque depois de algum tempo começou a ser esquecido.

a não ser por essa foto, tirada por ele no dia do seu enterro.

 

procura

 

 

sentei e fiquei ouvindo com certa desatenção o ruído constante dos carros deslizando pelo asfalto. era hora de voltar para casa, depois do trabalho, o fluxo estava intenso. aproveitei para pensar na vida, você sabe, toda vez que a gente se senta num lugar qualquer, sozinho, é hora de pensar na vida e fazer balanço. nada muda, você se distrai daí a pouco, mas pelo menos pensou na vida.

o lado interno do ser humano é o que há de supremo interesse, talvez porque inacessível. posso ter os pensamentos mais terríveis, virar átila, o huno, e impedir a grama de crescer sob meus pés. posso assassinar meus inimigos a facadas, beijar a boca da mocinha, mesmo que ela esteja casada com outro, raptá-la, posso viajar até o outro lado do universo em microssegundos (cancelo toda chatice entediante da viagem, os pensamentos abstratos que ocorrem no percurso) e combater alienígenas só por farra, porque no fundo seríamos ótimos amigos e praticaríamos surf juntos na boa. posso ir para o japão, ser médico sem fronteira, posso ser bilionário que tem jato próprio e horários absurdos, posso ser fotógrafo de guerra, acuado na esquina da praça de guerra, prestes a fazer a foto da minha vida. o detetive que está lá na frente, pensamentos avançados, solucionando o crime antes que ele tenha acontecido, sou eu.

a caixa preta do meu cérebro permanece intacta, impecável. só eu tenho acesso. não conto a ninguém o que vai ali.

 

pensa que é fácil?

 

 

você é a pessoa certa na hora errada, ela disse.

prefiro ser a pessoa errada, ele revidou. pessoas certas são chatas demais. pessoas erradas são divertidas.

embora.

embora, ele continuou, eu não seja exatamente uma pessoa divertida.

o que faz de você a pessoa certa, portanto.

a pessoa certa para você, não para todo mundo.

bem, espero que seja isso mesmo, que você seja certo apenas para mim.

mas, se sou certo para você, por que você não me quer?

quero, mas não agora.

não me quer porque não é a hora certa?

certo. é a hora errada.

vamos acertar nossos relógios, então.

ha ha.

tenho medo.

de quê?

quando for a hora certa, talvez então eu seja a pessoa errada.

que é o que você quer ser. você disse isso há pouco.

eu queria ser divertido, é diferente. e quero você agora, na hora errada.

o que faz de você a pessoa errada, nesse momento.

por que é o momento errado?

porque estou com outra pessoa.

que nesse momento é a certa…

…mas que daqui a pouco talvez não seja mais.

 

tipos de gente

 

 

há pessoas boas e há pessoas honestas.

as boas se preocupam, acreditam em ética, moral e deus, praticam ações produtivas, defendem o meio ambiente, causas sociais, supõem contribuir com atitudes para alguma noção abstrata de coletividade.

pessoas honestas sabem que o homem é lobo do homem (e uma parte da humanidade, por definição, feita de cordeiros e sacrifícios), agem com praticidade e eficiência, leem notícias sobre meio ambiente mas não perdem muito tempo com bobagens, sabem que precisam cuidar sobretudo de si mesmas e se garantir.

ambos escovam os dentes depois do café da manhã e se você pudesse vê-los através das janelas de suas casas ou apartamentos realizando tarefas corriqueiras não iria encontrar qualquer traço que os diferenciasse uns dos outros.

 

sangue

 

 

meu tipo sanguíneo é negro como minha bílis.

a bílis é minha alma, meu humor — ou a falta dele.

a falta do humor é a ausência de minha alma.

nada tenho naquele que nada me diz. quando lembro dos amigos imaginários dos meus amigos: não sei se rio, se desdenho.

devia rir a minha bílis. mas não consigo me livrar desse lado extremamente melancólico que me modera.

 

cinzas

 

 

as cinzas do meu pai estão na urna sobre a mesa e olho para o que parece um vaso com tampa, enquanto tomo essas notas.

meu pai foi homem prático ao longo da existência, sempre tomou providências sozinho de tudo o que lhe dizia respeito. depois de morto, a surpresa. queria ser cremado, o que é complicação dos diabos num país que não facilita a vida para você, que dirá a morte. tivemos que usar influência e suborno.

não era tudo: ele deixou anotado no testamento o que era para ser feito com as cinzas e, quanto mais penso a respeito, mais concluo que ele queria me punir, antes de me entregar a herança.