além do alcance

 

 

passou a vida a rabiscar histórias no papel, à proporção que a vida rabiscou de volta linhas em seu rosto, cada vez mais profundas. a ambição de todo escritor é vencer essa queda de braço impossível, perdida antes mesmo de começar.

a luta, ele sabe, não é contra a vida, mas para achar o núcleo quente dos corações e almas humanos, revirá-los do avesso e imprimir aí a marca que deseja.

o método é de suposições equivocadas, avanços no escuro, falsas intuições, à procura da baleia branca na linha do horizonte — ela em fuga ardilosa abaixo da linha da água, sem nem um jato lançado como pista.

 

pontos de virada

foto | nikos economopoulos

 

 

de cara, ele eliminava todos os filósofos antigos que acreditavam em alma: se o sujeito crê numa bobagem infantil dessas, argumentava, é capaz de acreditar em qualquer coisa. todos sumariamente reprovados.

então conheceu aquela mulher que revirou os polos de sua bússola interna de ponta-cabeça e sucumbiu, além de ter aberto mão de toda arrogância. secretamente, no entanto, continua a duvidar de alma.

 

carta japonesa

 

 

pensei que fosse japonês. cheguei a escrever carta em ideogramas, cheia de hai-kais a respeito de cerejeiras em flor, folha que flutua, lua refletida na poça. plantei um bonsai, planejei um hara-kiri, que não tive a honra e sagacidade de cumprir.

o que me deu a verdadeira dimensão: não sou japonês. não escrevo ideogramas, não sei a métrica do hai-kai, nunca nem vi uma cerejeira em flor, só em foto, não sei como adubar um bonsai…

ainda penso em hara-kiri. não da maneira dramática de um japonês, abrindo a barriga com uma espada, padrinho ao lado prestes a me partir o pescoço com uma espada caso eu não consiga manter a boca fechada, devo ter sido nipônico em alguma encarnação passada…

 

aviso herético

 

depois de anunciar destemidamente que o céu é deserto de narrativas e não receber qualquer raio na cabeça de volta como castigo, o blog orgulhosamente apresenta nova série novinha em folha: heresias celestiais.

a partir de amanhã, provocações desabusadas para seguidores de carteirinha de ideias religiosas (para minha sorte, pouca gente lê o blog, de modo que não serei apedrejado, queimado em praça pública, nem receberei jato de spray de pimenta nos olhos dos outros).

aguardem.

 

ainda há tempo

foto | vaclav krpelik

 

 

ele disse que queria conhecer alguns lugares antes de morrer — e uma vez que havia prestado bons serviços e toda recompensa parecia pequena, acataram os desejos.

assim, pôde sentar-se à saída de duas ou três destilarias de cerveja e uísque, para experimentar os respectivos sabores antes de os líquidos serem engarrafados e, em seguida, foi até determinada região portuária, onde foi apresentado ao puro óleo de cachalote, aquele que melville descreve em moby dick como “o mais doce de todos os óleos”.

fosse uns anos mais novo, teria se arriscado a tentar a sorte num navio baleeiro. no meio do mar respira-se um ar mais puro, porque sem tanta gente em volta para compartilhar, como acontece nas cidades. chegou a pensar que deus existia em onipresença no planeta em maior parte onde menos gente houvesse, mas quanto a isso não posso dizer muita coisa, foge da minha alçada.

 

desaforismos em série 96

960. os verdadeiros lugares nunca frequentam mapas.

 

961. mágoa: essa marca que não se modifica a não ser para aumentar, essa tatuagem na alma.

 

962. a vida é uma longa viagem, mas poucos se sentam à janela.

 

963. liberdade de ir e vir dura até o pedágio.

 

964. toda moral é uma doença voluntária.

 

965. pensamento, malabarista a evoluir em piruetas pelo cérebro.

 

966. minhas ideias são desconjuntadas, mas para mim parece o mesmo que um homem se benza ou solte um pum: está em busca de alívio.

 

967. livro é a aventura da inteligência.

 

968. na primeira parte da vida, o tempo é estático, duro; depois, acelera-se incontrolavelmente.

 

969. manter sempre uma migalha de fome, para alimentar a insaciedade da vida. um homem satisfeito é preguiçoso e vão.

 

acerto

 

 

o diabo montava um corcel com olhos de fogo e não precisava de cabresto para que o cavalo soubesse o rumo a tomar. ele passou ao meu lado num galope furioso — e no entanto pude vê-lo em câmara lenta quando virou o rosto em minha direção e me recordou que meu dia estava chegando.

não agradeci a lembrança, estava preocupado com outras coisas no momento e espero que essa descortesia de minha parte não me pese na conta.

 

percepção

 

 

fechei os olhos e na escuridão pontilhada de vagalumes que se seguiu tentei me concentrar no zumbido permanente que faz em meus ouvidos (ou será no cérebro?).

pareceu que o mundo só existia dentro da minha cabeça: tudo o que percebo como exterior é apenas a projeção complexa e divertida, a peça que meus sentidos pregam.

então abri os olhos à espera de luz e o mundo não estava mais lá.

 

ciclos

 

 

algo se derreteu dentro de mim quando o fantasma de meu pai veio me dizer que não precisava ser vingado, mas sentia frio.

eu lhe arrumaria casaco? bem, sim, parecia razoável, o filho inverte a relação e agasalha o fantasma do velho pai — não é assim que sempre foi na história da humanidade? ele agradeceu quando lhe estendi o mais quente dos meus suéteres e arrastou os pés, de volta para o frio.

 

você é meu pasto

foto | luiz braga

 

 

sabe esse verniz de civilidade que você enxerga em mim? não se engane, continuo selvagem e, na primeira oportunidade, pularei sobre seu pescoço e beberei o sangue diretamente, sem a delicadeza de servi-lo antes numa taça.

é assim que sou. basta que você mantenha esse sorriso e eu comece a desconfiar de algo. seu coração será meu almoço.

 

reviravolta

foto | louis faurer

 

 

era um cantor lírico, ou seja, vivia nesse mundo à parte de vaidades triviais, briguinhas sem fim, falta de patrocínio e financiamento, inseguranças, confusões, crises e superação.

um dia surgiu problema verdadeiramente sério: a cada apresentação se afogava na própria voz.

terapia, um, dois, cinco especialistas em fisiologia, três ou quatro otorrinos, o mesmo número de professores de canto consultados, ninguém deu jeito. a única solução apontada: parar o canto.

foi criativo. contratou uma bela salva-vidas que lhe aplica um boca a boca ao fim de cada espetáculo, quando morre afogado pela voz e é sistematicamente ressuscitado.

 

surpresas do coração

escultura | andre petterson

 

 

o diabo vestia fraque e trazia belas flores num arranjo perfeito, como presente à elegância dela, que, agradecida e lisonjeada, sorriu.

foram felizes durante o jantar — cada um a seu modo, bem entendido. a moça, por ceder aos apelos que lhe foram feitos. o rapaz, por exigir algo que ia além dos limites e antecipar que havia potencial para um sim.

o casamento foi o ponto de virada, o momento em que as promessas feitas desmoronaram em escaramuças e conflitos cada vez mais atrozes. o convívio tornou-se fardo para ambos. entretanto, irresolutos e orgulhosos, preferem criar um inferno nas vidas recíprocas do que se separar em busca de felicidade pessoal, solitária ou em nova companhia, em qualquer outra parte.

sempre riem com desdém — e separadamente — toda vez que escutam a história de alguém que busca ser feliz.

 

desaforismos em série 95

950. fotografia rompe a transitoriedade: na imagem, o presente se estende indefinidamente.

951. versão otimista: quanto mais se vive, mas se viveu. versão realista: quanto mais se vive, menos se vive.

952. bancos parecem mais interessados no meu dinheiro que eu mesmo; não medem esforços para nos separar.

953. bancos sempre vencem porque são o que mais bem se aproximam da brutalidade da vida.

954. toda morte — mesmo a natural — é inóspita.

955. matar em pequena escala é assassinar. em grande, faz de você um exemplar para a história.

956. todo anjo é pálido.

957. prudência e cautela são armas dos covardes: mas é delas a manutenção da sobrevivência.

958. toda economia finge uma limpeza que efetivamente não tem: quanto do dinheiro do narcotráfico, da prostituição, do contrabando ganha respeitabilidade nos papéis incolores das bolsas e mercados de ações…

959. trair-se para entender a necessidade humana de traição. só depois trair os outros.

 

o quinto convidado

foto | jack davison

 

 

eles tinham alguns metros de escuro entre eles e um terceiro convidado à mesa, além do casal amigo. a conversa pulou de um assunto a outro e ela não conseguiu se esquecer de que durante a tarde havia recebido o telefonema da amante do marido e mesmo assim preferiu não cancelar o convite — o casal amigo estava de mudança para outro país e ficariam sem se ver por muito tempo.

certas coisas parecem desenhadas para a catástrofe e não há o que fazer, do mesmo modo que não é possível mudar as cores de um quadro que está pintado, a não ser que se pinte por cima.

por mais que as aparências estivessem preservadas, o casal convidado percebia com estranheza que algo estava fora de lugar — os dois guardariam uma lembrança amarga daquele que era o último encontro por provavelmente os próximos quatro anos e meio. as fagulhas foram contidas antes de provocado o incêndio, mas quando o casal anfitrião estivesse só a noite prometia turbulência.

pensou em evitar os adjetivos óbvios — canalha, cafajeste — e tentar sarcasmo — chamá-lo de fanfarrão, por exemplo. mas o papel de mulher ultrajada não condizia com o perfil e começou a conversa num tom mais audacioso.

— quer dizer que agora estou livre para também procurar um amante? ou quem sabe vários.

mais tarde, ainda na mesma noite, concluiu que revidar com as mesmas armas não seria tão eficaz quanto conquistar a amante do marido para si e só então entrou com o pedido de divórcio.

 

auden

foto | toni frissell

 

 

quebrem todos os relógios, segurem o sol, impeçam as órbitas dos planetas, desviem o curso de todos os rios, o fluxo das correntes marítimas, suspendam os ventos de soprar. se ela não está ao meu lado, a vida é filme sem cor, movimentos pálidos, som distorcido.

quando descerem o caixão à terra, o meu deve estar junto, não importa se ainda estiver vivo, isso não dura.

não quero pompa, música fúnebre, criados de luvas, a mim me basta saber que serei companheiro dela na eternidade do silêncio.

 

convite

vortografia | simon gardiner

 

 

ela recebeu com mistura de surpresa e certo divertimento o convite para nadar na piscina dele, impresso em papel de qualidade, o que a levou a pensar a respeito de quantas pessoas teriam recebido o mesmo convite. não se tratava de churrasco, mas uso da piscina.

será que era algum tipo de brincadeira estranha? compareceu no dia e hora marcados, usou a piscina, desfrutou do sol e da companhia agradável do anfitrião e até pensa na melhor forma de retribuir à altura o convite inusitado. descartou mandar flores ou comprar caixa de chocolate. talvez uma edição dos contos de lydia davis ou das histórias curtas de robert walser.