Foi exatamente por estar com esse dilema enunciado de maneira explícita, essa escolha entre algo irredutível e a possibilidade de continuar me angustiando com a vida, que não disse nada nem ao psiquiatra que me atendeu, doutor Rogério Fonseca, um sujeito de cabelos brancos e extremamente pragmático, que logo na primeira consulta foi me receitando remédios, nem à psicóloga que em seguida ele me recomendou que procurasse, doutora Fernanda Aguiar, magra, cabelo escorrido, um tanto seca ao primeiro contato, mas que depois se revelou de uma afetuosidade sem fim, o que foi ótimo. Não contei a nenhum dos dois, nem aos meus amigos, que andava vendo agora o fantasma de Marta. Sozinha, ela me aparecia sem a presença de Álvaro. Geralmente chegava para mim de manhã, quando eu olhava para os meus olhos fundos no espelho do banheiro, o mesmo banheiro, mantive a casa. Ela aparecia ao fundo do espelho, bela, com expressão tranquila, e me sorria, de maneira muito convidativa. Eu virava para trás, naquele misto de esperança de que ela desaparecesse, porque só estava no espelho, e a vontade de que continuasse lá, porque sentia saudades, e quando eu me virava ela estava, ainda com o sorriso. Marta era um fantasma real.
Por isso interrompi o consumo das pílulas que o doutor Fonseca me receitou. Por isso ando pensando seriamente em não seguir adiante com o tratamento de conversações sem fim com a doutora Fernanda a respeito daquilo que me angustia e incomoda. Virei eu mesmo uma tela de desespero e sofrimento. Retrato do crítico quando viúvo. Mas fim às resistências, a ideia é ceder ao apelo dos abismos. Por isso ando seriamente inclinado a confiar no sorriso de Marta, no convite de Marta, no exemplo de Marta.
[FIM]
Devastador!
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Obrigado. Eu acho.
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Fiz a leitura sobre o prisma de letramento emocional e amei. Obrigada pelo convite estarei sempre dando uma passadinha… Já fui enganada no trabalho e sugada, sei o que vc quis dizer….
Silvia
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Obrigado, Silvia, pela leitura. Fico muito contente que você tenha gostado. A partir de hoje, voltam as micronarrativas e sinta-se sempre bem-vinda.
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esse crítico: mais um fantasma que não aprendeu a morrer.
adorei a novela e a série de fotos da vivian maier. inclusive, roubei algumas 🙂
você é the best, paulo. adoro.
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Que bom que você gostou da novela, Mirian. E as fotos da Vivian Maier, acho o seguinte, quanto mais ela se tornar conhecida, melhor, porque merece.
Beijo.
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quero impresso.
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Opa, eu adoraria pensar numa versão impressa. Penso em duas novelas para isso, O crítico e uma outra que se chama Crimes editoriais, porque têm afinidades temáticas. Ia ser ótimo vê-las editadas…
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