Com a publicação da história de número 280 encerra-se a publicação de Contículos, esse livro de fragmentos de contos e ponderações. Espero que o leitor tenha gostado.
O blog entra agora em recesso por não sei quanto tempo. Até a volta, se houver.
O estágio em que você tem uma ideia nova a respeito de algum assunto sobre o qual escrever corresponde a ser içado do seu cotidiano, do molho do banal onde todo o seu ser se encontra mergulhado, para respirar um ar puro e renovado. Esse estágio, infelizmente, dura pouco. Seu corpo é, logo em seguida, sugado novamente para baixo. Mas enquanto dura o ar das alturas, é um espetáculo.
É de se supor que o gênio seja aquele que é capaz de flutuar o tempo todo, que só conhece o ar puro das alturas.
— Paulo Paniago
Doses às vezes muito generosas de orgulho têm propósito: servem para disfarçar ou fazer esquecer a mediocridade em que se está mergulhado.
— Paulo Paniago
Como não havia muito o que fazer na vida, em séculos passados, as pessoas aprenderam a arte da conversação, a estender além do necessário o tamanho de cada conversa. A ideia de eficiência é, nesse caso, uma impertinência sem sentido.
Depois, como foram aparecendo mais e mais opções, as pessoas perderam aos poucos a capacidade de conversar. Mas não de serem ineficientes durante a conversação que mantêm.
Ainda falam muito, é bem verdade, mas dizem bem pouco.
— Paulo Paniago
Contratar seguro é o mesmo que pagar para manter a esperança de que o pior não vai acontecer.
— Paulo Paniago
Ferozmente racional, ele se recusou a levar a sério a voz que lhe dizia para fazer isso e aquilo, beije essa mulher, recuse esse emprego, pule nos trilhos, a voz lhe dava ordens o tempo todo.
Nem por descumprir a voz se calou, sempre lhe dizendo o que fazer, mas ele continuou a ignorar. Só assim, sabia, podia dar certo.
— Paulo Paniago
Vai e diz que eu morri feliz.
O que é mais uma mentira em meio a tantas?
— Paulo Paniago
As esperanças que estão na base da formação de uma pessoa podem ser sempre vãs.
Mas isso não importa muito, porque elas têm enorme poder de renovação diante das mais adversas circunstâncias.
— Paulo Paniago
É como se de antemão ela e eu soubéssemos não ter qualquer possibilidade de futuro para nós. E nos agarramos um ao outro com a intensidade e o desespero com que o náufrago se segura na tábua que flutua.
— Paulo Paniago
Ele insistia em fazer miniaturas de obras-primas, mesmo ciente de que as pessoas preferem de longe a escala monumental.
— Paulo Paniago
Não é interessante que alguém defina algum atributo e todo o seu ser passe automaticamente a ser reconhecido apenas a partir dessa perspectiva afinal tão ínfima?
Dizem de alguém que a pessoa é afoita, meticulosa, precipitada, vingativa, serena, introspectiva, melancólica e de repente a pessoa é apenas isso, o invólucro de uma simples palavra que afinal não consegue entregar o que alguém de fato é.
— Paulo Paniago
O que me irrita profundamente no jogo de xadrez é a previsibilidade das regras estabelecidas: imutáveis. É um conjunto delas e a variedade praticamente infinita de variantes (não à toa um grupo de movimentos recebe inclusive este nome: variante).
Se houvesse uma jogada secreta, a carta a ser exibida ao adversário que permitisse que qualquer peça do tabuleiro pudesse fazer um movimento inesperado — ziguezague, por exemplo — eu poderia reconsiderar a minha opinião.
Ainda bem que não passa disso, no fim das contas, apenas a minha opinião.
— Paulo Paniago
Até que fui um maluco razoável boa parte da minha vida. A realidade sempre fez questão de segurar o meu pé e me puxar de volta para o chão quando eu teimava em imaginar demais e começava a flutuar.
A realidade é uma vaca louca que não me deixa em paz.
— Paulo Paniago
Você está bem?
Não, não estou bem, mas também não estou morrendo. Ou pelo menos, não agora, neste imediato instante. Amanhã, não sei. Amanhã é um outro mesmo dia.
E você, como vai?
— Paulo Paniago
Nossas línguas falam uma língua só delas, sem palavras, apenas tato e salivas.
— Paulo Paniago
A língua, os dentes.
— Paulo Paniago
É como uma tela de Egon Schiele: tem potencial para o belo, mas também incorpora o grotesco quase sempre.
— Paulo Paniago
Terrível situação: existem dois lados, terrivelmente errados — inclusive errados quando exigem de todos que se tome partido.
— Paulo Paniago
Podemos dividir dores e pesares, lucros não.
— Paulo Paniago
Fique à vontade, mas lembre-se: a casa não é sua e a porta da rua é serventia.
— Paulo Paniago
As pessoas não podiam se importar menos. Então, elas se importaram menos.
— Paulo Paniago
Dizem: as coisas podem piorar. Claro: se nada muda. Não muda: ou muda pouco, o insuficiente.
É como se dissessem: mas talvez melhorem. As coisas: elas pioram.
— Paulo Paniago
Só confio em minhas próprias mãos, ele disse.
Eu, nem nas minhas, rebati.
— Paulo Paniago
O plano para um país como o meu é dar errado, sempre. Nisso viramos especialistas.
O meu é também um país de desmentidos, que está sempre atrasado.
Trata-se ainda de um país de otimistas que sempre dizem: podia ter sido pior.
É ainda um país em que o absurdo tem rosto familiar.
— Paulo Paniago
Na hora H, ele falava em democracia e reclamava da ausência do restante do alfabeto.
— Paulo Paniago
Ínfimo múltiplo comum.
— Paulo Paniago
Não de uma vez.
De modo progressivo.
Ou à míngua.
— Paulo Paniago
A matéria que vendem é um botijão e seu interior impalpável: mantido sob pressão.
— Paulo Paniago
Algumas pessoas têm a vantagem de dizer que passam por um momento triste. Isso lhes ajuda a melhor identificar a felicidade quando ela ocorre e a desfrutar do sabor, por contraste.
Mas o que dizer da pessoa que vive triste e que encara a felicidade como doença a ser evitada a todo custo?
— Paulo Paniago
Para mim, o exílio é em toda parte. Lá ou aqui, onde quer que eu esteja, é indiferente. É pelo lado de dentro que mais me estranho e de mim não tenho como voltar.
— Paulo Paniago
Dedilhei meus argumentos amorosos entre seus lábios — e pareceu que pelo menos naquele momento nós nos entendemos.
— Paulo Paniago
Devia haver salvo-conduto que permitisse deixar a vida em paz.
— Paulo Paniago
Isso que diz uma outra coisa. Que parece dizer, que quase diz.
Mas negaceia, repele e transmuta.
— Paulo Paniago
Ele, o coração aos pulos, achou que era amor.
Era enfarte.
— Paulo Paniago
Tudo cai e gravita, mesmo pensamentos.
— Paulo Paniago
Não leio o mundo diretamente: ele é escândalo, acinte, mesmo assim.
Leio por meio dos livros, notícias de jornal, o que me chega pela televisão, o que me contam e o que escolhem omitir, que parece sempre mais do que me contam.
Os trabalhos do mundo são incessantes, tudo resfolega e procura se cansar.
Leio o mundo de modo distorcido. No fundo, não tenho ideia do que ele é.
Penso, reflito, sobre mim mesmo e sobre os escândalos, violências, brutalidades, discussões intermináveis, ajustes, acordos, desacordos, pendências. O mundo adia muita coisa: porque trata muita coisa e tudo ao mesmo tempo. O mundo é um inferno no qual dois ou três — parentes do Diabo? — parecem se divertir bastante, enquanto os mais de nós estamos suados e nervosos, envolvidos numa modalidade de trabalho que não houve meios de recusar.
— Paulo Paniago
A gente lê além das palavras, todo mundo sabe fazer isso. As palavras mentem, a expressão também pode fazer isso, mas é mais difícil. Os sinais estão lá, a tentativa é decifrar, ver o que é possível separar entre o disfarce e a revelação. O momento em que o rosto se ensombrece, em que mostra algo que não devia, o movimento da testa, o franzir, o lugar para onde o olho se dirige, tudo diz alguma coisa. O agitar das mãos, a mudança de apoio da bunda, de um lado para outro, sobre o sofá ou a poltrona.
Tudo entrega, você fica perfeitamente legível.
— Paulo Paniago
Embora a vida não seja nada disso, nas redes sociais as pessoas vivem num estado perene de felicidade em tempo integral.
— Paulo Paniago
Um cego que chora é um cego duplo, ao quadrado. Ou talvez seja um triste ao quadrado. Ou, ainda, talvez seja a mesma coisa.
— Paulo Paniago
Por onde entrei para este mundo? Tecnicamente, entrei passando pelos grandes lábios da vagina de minha mãe, mas o que sei a respeito disso? Entro no mundo quando consigo reter na memória alguma coisa, é isso — a memória — que me permite dizer tanto um eu fiz quanto um eu sou.
— Paulo Paniago
Melancolia é uma depressão sob efeito de calmante.
— Paulo Paniago
Eu gostava tanto de você, ou achava — e havia sinceridade na minha determinação de achar — que gostava. Mas a verdade é que tenho uma dificuldade tremenda de gostar de alguém. Gosto de coisas e gosto do prazer que às vezes sinto com coisas — sorvete, um bom filme. Mas a verdade é que viver estraga muito a capacidade de comoção: ninguém te adverte que isso pode acontecer mais cedo ou mais tarde.
O que eu posso fazer para — ela disse.
Queria reverter.
Não há nada a fazer, eu disse, porque não havia mesmo. Eu estava morto por dentro, à espera de que essa morte se exteriorizasse e se tornasse definitiva.
— Paulo Paniago
Que sorte de acasos e circunstâncias escolhe quem vai merecer destaque, quem esquecimento, é talvez um dos mais bem guardados segredos do universo.
— Paulo Paniago
Para viver é preciso paciência e impaciência e doses cavalares de desequilíbrio entre as duas.
— Paulo Paniago
Não sei bem onde me encontro nessa corrida, mar adentro, mar afora.
— Paulo Paniago
Os ossos se arrostam, se sustentam com o trabalho dos músculos e o comando (a vontade) do cérebro.
O mundo se movimenta e meu corpo sobre ele.
— Paulo Paniago
O que tivemos foi muito bom por um minuto ou dois.
O problema, meu bem, é o que vem na sequência.
— Paulo Paniago
Sempre esperei ser desmascarado a qualquer momento. Você é uma fraude, alguém ia dizer, e como resultado eu abaixaria a cabeça, admitindo silenciosamente a culpa, decepcionado comigo mesmo.
Parece que minha decepção é só com meus defraudadores, que não se apresentam.
— Paulo Paniago
Eu é que sei o quando dói.
— Paulo Paniago
Assisto a um anúncio na televisão em que a câmera sobrevoa um trecho de praias nas costas da Austrália e mostra rodovias costeiras com paisagens muito belas. Há rochedos que saem da água em alguns pontos e, na areia, casinhas coloridas enfileiradas. Em outro trecho das imagens, a câmera mostra, do alto, águas transparentes, um campo de golfe e na sequência trechos de floresta tropical, a copa das árvores vista do alto. Toda essa bela sequência de imagens tem um propósito: convencer potenciais turistas que fiquem logo interessados em começar um deslocamento. Veja como o país é bonito, as imagens dizem. Veja o que você está perdendo por não ter vindo aqui visitar de perto toda essa beleza. O que você está esperando, um convite oficial? É esse anúncio.
Tudo o que foi mostrado aparece — nem de longe coincidência — no intervalo do campeonato australiano de tênis, o Aberto da Austrália, que faz parte do principal circuito mundial de tênis. Então eu me distraio das imagens do intervalo, a Austrália sub-reptícia que deve estar entrando no meu subconsciente, e começo a pensar que todo o torneio foi organizado como pretexto para propaganda turística. Posso estar exagerando no raciocínio, a verdade talvez seja que a indústria do turismo se aproveitou da ocasião que se oferece a ela generosamente, mas mesmo assim, parece existir algo de perverso.
O fato é que começo a pensar nos jogadores de tênis e no nível de controle que dispõem de suas próprias vidas. Claro, o sujeito sempre pode jogar tudo para o alto e nunca mais voltar, seja ao circuito do tênis, seja a uma quadra. Mas eles ficam por ali, jogam, ganham (bastante) dinheiro, fazem o circuito se manter. Novamente no ano que vem, tudo igual. Alguém sobe no ranking, alguém desce. São animais treinados para ficar por ali, naquelas intermináveis exibições de excelência e entrevistas protocolares ao fim do jogo.
Do mesmo jeito que eu sou um animal treinado para ficar diante da televisão e fico, sonhando com as praias paradisíacas da Austrália.
— Paulo Paniago
Estou sabendo.
Quer dizer então.
É isso aí.
— Paulo Paniago