CONTÍCULOS (280) Flutuações

 

 

O estágio em que você tem uma ideia nova a respeito de algum assunto sobre o qual escrever corresponde a ser içado do seu cotidiano, do molho do banal onde todo o seu ser se encontra mergulhado, para respirar um ar puro e renovado. Esse estágio, infelizmente, dura pouco. Seu corpo é, logo em seguida, sugado novamente para baixo. Mas enquanto dura o ar das alturas, é um espetáculo.

É de se supor que o gênio seja aquele que é capaz de flutuar o tempo todo, que só conhece o ar puro das alturas.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (278) Conversações importantes e outras nem tanto

 

 

Como não havia muito o que fazer na vida, em séculos passados, as pessoas aprenderam a arte da conversação, a estender além do necessário o tamanho de cada conversa. A ideia de eficiência é, nesse caso, uma impertinência sem sentido.

Depois, como foram aparecendo mais e mais opções, as pessoas perderam aos poucos a capacidade de conversar. Mas não de serem ineficientes durante a conversação que mantêm.

Ainda falam muito, é bem verdade, mas dizem bem pouco.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (276) O que fazer com essa voz na cabeça

 

 

Ferozmente racional, ele se recusou a levar a sério a voz que lhe dizia para fazer isso e aquilo, beije essa mulher, recuse esse emprego, pule nos trilhos, a voz lhe dava ordens o tempo todo.

Nem por descumprir a voz se calou, sempre lhe dizendo o que fazer, mas ele continuou a ignorar. Só assim, sabia, podia dar certo.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (271) Tire os rótulos, o que fica

 

 

Não é interessante que alguém defina algum atributo e todo o seu ser passe automaticamente a ser reconhecido apenas a partir dessa perspectiva afinal tão ínfima?

Dizem de alguém que a pessoa é afoita, meticulosa, precipitada, vingativa, serena, introspectiva, melancólica e de repente a pessoa é apenas isso, o invólucro de uma simples palavra que afinal não consegue entregar o que alguém de fato é.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (270) Uma ligeira mudança no jogo

 

 

O que me irrita profundamente no jogo de xadrez é a previsibilidade das regras estabelecidas: imutáveis. É um conjunto delas e a variedade praticamente infinita de variantes (não à toa um grupo de movimentos recebe inclusive este nome: variante).

Se houvesse uma jogada secreta, a carta a ser exibida ao adversário que permitisse que qualquer peça do tabuleiro pudesse fazer um movimento inesperado — ziguezague, por exemplo — eu poderia reconsiderar a minha opinião.

Ainda bem que não passa disso, no fim das contas, apenas a minha opinião.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (269) A realidade e eu

 

 

Até que fui um maluco razoável boa parte da minha vida. A realidade sempre fez questão de segurar o meu pé e me puxar de volta para o chão quando eu teimava em imaginar demais e começava a flutuar.

A realidade é uma vaca louca que não me deixa em paz.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (258) Algumas queixas essenciais

 

 

O plano para um país como o meu é dar errado, sempre. Nisso viramos especialistas.

O meu é também um país de desmentidos, que está sempre atrasado.

Trata-se ainda de um país de otimistas que sempre dizem: podia ter sido pior.

É ainda um país em que o absurdo tem rosto familiar.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (253) Triste toda a vida

 

 

Algumas pessoas têm a vantagem de dizer que passam por um momento triste. Isso lhes ajuda a melhor identificar a felicidade quando ela ocorre e a desfrutar do sabor, por contraste.

Mas o que dizer da pessoa que vive triste e que encara a felicidade como doença a ser evitada a todo custo?

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (246) Camadas e películas para ultrapassar

 

 

Não leio o mundo diretamente: ele é escândalo, acinte, mesmo assim.

Leio por meio dos livros, notícias de jornal, o que me chega pela televisão, o que me contam e o que escolhem omitir, que parece sempre mais do que me contam.

Os trabalhos do mundo são incessantes, tudo resfolega e procura se cansar.

Leio o mundo de modo distorcido. No fundo, não tenho ideia do que ele é.

Penso, reflito, sobre mim mesmo e sobre os escândalos, violências, brutalidades, discussões intermináveis, ajustes, acordos, desacordos, pendências. O mundo adia muita coisa: porque trata muita coisa e tudo ao mesmo tempo. O mundo é um inferno no qual dois ou três — parentes do Diabo? — parecem se divertir bastante, enquanto os mais de nós estamos suados e nervosos, envolvidos numa modalidade de trabalho que não houve meios de recusar.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (245) É preciso ler os sinais

 

 

A gente lê além das palavras, todo mundo sabe fazer isso. As palavras mentem, a expressão também pode fazer isso, mas é mais difícil. Os sinais estão lá, a tentativa é decifrar, ver o que é possível separar entre o disfarce e a revelação. O momento em que o rosto se ensombrece, em que mostra algo que não devia, o movimento da testa, o franzir, o lugar para onde o olho se dirige, tudo diz alguma coisa. O agitar das mãos, a mudança de apoio da bunda, de um lado para outro, sobre o sofá ou a poltrona.

Tudo entrega, você fica perfeitamente legível.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (242) Mundo é memória

 

 

Por onde entrei para este mundo? Tecnicamente, entrei passando pelos grandes lábios da vagina de minha mãe, mas o que sei a respeito disso? Entro no mundo quando consigo reter na memória alguma coisa, é isso — a memória — que me permite dizer tanto um eu fiz quanto um eu sou.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (240) Anestesiado

 

 

Eu gostava tanto de você, ou achava — e havia sinceridade na minha determinação de achar — que gostava. Mas a verdade é que tenho uma dificuldade tremenda de gostar de alguém. Gosto de coisas e gosto do prazer que às vezes sinto com coisas — sorvete, um bom filme. Mas a verdade é que viver estraga muito a capacidade de comoção: ninguém te adverte que isso pode acontecer mais cedo ou mais tarde.

O que eu posso fazer para — ela disse.

Queria reverter.

Não há nada a fazer, eu disse, porque não havia mesmo. Eu estava morto por dentro, à espera de que essa morte se exteriorizasse e se tornasse definitiva.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (234) À espera da verdade

 

 

Sempre esperei ser desmascarado a qualquer momento. Você é uma fraude, alguém ia dizer, e como resultado eu abaixaria a cabeça, admitindo silenciosamente a culpa, decepcionado comigo mesmo.

Parece que minha decepção é só com meus defraudadores, que não se apresentam.

 

 

— Paulo Paniago

 

CONTÍCULOS (232) Praias do paraíso

 

 

Assisto a um anúncio na televisão em que a câmera sobrevoa um trecho de praias nas costas da Austrália e mostra rodovias costeiras com paisagens muito belas. Há rochedos que saem da água em alguns pontos e, na areia, casinhas coloridas enfileiradas. Em outro trecho das imagens, a câmera mostra, do alto, águas transparentes, um campo de golfe e na sequência trechos de floresta tropical, a copa das árvores vista do alto. Toda essa bela sequência de imagens tem um propósito: convencer potenciais turistas que fiquem logo interessados em começar um deslocamento. Veja como o país é bonito, as imagens dizem. Veja o que você está perdendo por não ter vindo aqui visitar de perto toda essa beleza. O que você está esperando, um convite oficial? É esse anúncio.

Tudo o que foi mostrado aparece — nem de longe coincidência — no intervalo do campeonato australiano de tênis, o Aberto da Austrália, que faz parte do principal circuito mundial de tênis. Então eu me distraio das imagens do intervalo, a Austrália sub-reptícia que deve estar entrando no meu subconsciente, e começo a pensar que todo o torneio foi organizado como pretexto para propaganda turística. Posso estar exagerando no raciocínio, a verdade talvez seja que a indústria do turismo se aproveitou da ocasião que se oferece a ela generosamente, mas mesmo assim, parece existir algo de perverso.

O fato é que começo a pensar nos jogadores de tênis e no nível de controle que dispõem de suas próprias vidas. Claro, o sujeito sempre pode jogar tudo para o alto e nunca mais voltar, seja ao circuito do tênis, seja a uma quadra. Mas eles ficam por ali, jogam, ganham (bastante) dinheiro, fazem o circuito se manter. Novamente no ano que vem, tudo igual. Alguém sobe no ranking, alguém desce. São animais treinados para ficar por ali, naquelas intermináveis exibições de excelência e entrevistas protocolares ao fim do jogo.

Do mesmo jeito que eu sou um animal treinado para ficar diante da televisão e fico, sonhando com as praias paradisíacas da Austrália.

 

 

— Paulo Paniago