No rumo de casa 3

Imagem | Laurent Chehere
Imagem | Laurent Chehere

 

 

Um vento atroz percorria a praia e vinha até o centro da cidade, com aquele odor marítimo característico, como se o oceano fosse uma enorme panela em que os animais, mesmo vivos, estivessem sendo cozidos lentamente. A mulher tinha os cabelos soltos, esvoaçantes por conta do vento forte, e um casaco que era uma espécie de vela terrestre do corpo, navio e mastro de uma só vez. Tinha desembarcado à procura do grande amor de sua vida, todos estão sempre à procura do grande amor, esse mito que permanece no horizonte. Para quem encontrou, daí a pouco começa a ladainha de reclamar do convívio e é possível imaginar que o amor da vida está em outra parte, no canto do mundo reservado aos amores da vida. Numa foto antiga, ela aparecia nua, sorrindo para a câmera, segurava os seios com as mãos e sugeria topar qualquer convite inusitado. Agora a mala era quadrada e parecia pesar muito, teria ali dentro o que achava essencial, para o caso de encontrar o amor. Embarcar, navegar, criar expectativas, desembarcar do outro lado, erguer a mala, carregá-la por ruas ventosas, o cabelo desarrumado, o amor cada vez mais perto, é o que ela imagina, é o que todos começamos a imaginar, torcendo por ela, pelo encontro, adoramos todos as histórias com finais felizes, por mais que saibamos que só existem nesse formato de histórias, não na vida real. Na vida real há vento e cheiro forte de peixes, um oceano bravio e uma pedrinha que entra no sapato e precisa ser retirada, a travessia completa, um descortinar de oportunidades que tanto podem se revelar contentes quanto muito frustrantes, não se sabe. Talvez caia uma chuva e será muito bom se ela estiver abrigada, quando isso acontecer, será muito bom se estiver aquecida e sentada, uma xícara de café ou chocolate quente para também aquecer por dentro, um olhar lançado para o vidro da janela onde as gotas de chuva batucam e se prendem, para começar uma corrida vidro abaixo, quem vai chegar primeiro, o modo como se prender aos detalhes impede o pensamento de ir atrás de questões complicadas. Aproximei-me da mesa e disse, pode ser que seja eu. Perdão, ela respondeu, não entendi. Nada, comentei, apenas disse em voz alta uma coisa que estava pensando, me desculpe. Ela virou o rosto de novo para a janela, tudo bem, disse, a voz suave, melodiosa, um acinte de voz, mas a atenção sobre a minha pessoa começou a se diluir naquele momento. Os cabelos eram cacheados e enfeitavam um rosto que eu tinha vontade de dizer que pertencia a uma deusa. Ia perdê-la, para sempre, se não a fisgasse. Aquele peixe, aquela sereia, vinda do oceano até onde eu estava, era um presente mas era fugidio. Ou você age, minha voz interna me deu um ultimato, ou perde. Com você eu seria capaz de ir a qualquer água, a toda parte, falei. Ela me olhou como quem se dá conta de estar na presença de um louco. Tem hora que não se pode perder tempo, ou você lança a linha e o anzol, ou vira o barco e passa fome. Não estou recitando uma fala de uma peça, não, moça, é isso mesmo que você acabou de ouvir. Qualquer parte. Entende? Posso te pagar mais uma bebida? E ali começou o nosso romance, o desentendimento mútuo, a vontade de ir ao outro lado do globo para encontrar um novo amor, porque ele está sempre lá, do outro lado, no canto do mundo reservado aos amores da vida.

 

Publicado por

paulopaniago

digo não

5 comentários em “No rumo de casa 3”

  1. Uma das melhores coisas que já li tuas. E leio bastante coisas tuas. E percebo, entre as coisas tuas, que algumas vezes deixamos de falar na 3ª pessoa, hum? Sim, o amor às vezes dói, às vezes dois.

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