Vida alheia

escada-e-sangue

 

 

Havia, houve uma faísca, um pedregulho que jurei que saiu do meu peito, uma alucinação desencontrada e sem destino certo, como os cigarros fumados e a nostalgia de vê-los num velho filme com músicos de jazz e copos e copos de bourbon que nunca me deram ressaca. A dor que sinto é falsa feito um poema que Pessoa não teve coragem de assinar e delegou a um outro. O hábito dos escritores deste tempo: transferir a crise. Rimbaud com o “eu é um outro”; Sartre com o “o inferno são os outros”; Pessoa com heterônimos; escritores de agora com vidas inventadas (o nome é autoficção). É um outro, não sei, a senhora deve estar enganada, pretendo dizer para a Morte quando ela vier me procurar. Toque aí no vizinho, vou sugerir. Que um outro possa ir no meu lugar, que viva minha vida delegada, as aventuras que não tenho coragem de enfrentar, os amores trepidantes que ferverão sangue alheio, os continentes que estou preguiçoso demais para começar a conhecer. A outra nostalgia que tinha era a de encarar os problemas e derrubá-los no soco. Mas contratei um assessor de imprensa, um agente literário, um consultor de imagem, um treinador personalizado, um técnico do viver que me ensine de novo a ter autonomia existencial. Os problemas planetários me atingem, mas só de raspão e desde que eu não precise mudar muitos canais. Houve um tempo em que me balançava num galho de árvore, mas agora tornei-me cinicamente pachorrento e desagradável. Só quem ainda tem fé na humanidade (um pobre coitado que nem me dá mais nos nervos porque parei de pensar a respeito dele e do assunto) crê que é possível reverter alguma coisa e se agita por isso. De onde eu vejo são apenas brumas e escuridão. Roubaram minha vida e nem reclamei, o traço, o resquício de saudade eu sufoquei. Achei que era uma faísca, um pedregulho a me escapar do peito. Mas era a brasa do cigarro de alguém que brilhou num sonho alheio.

 

Desilusões aos pedaços

Imagem | Ernesto González
Imagem | Ernesto González

 

 

1 Persistência sem fim

Ele não sabe bem por quê, mas deu ouvidos a uma dessas frases edificantes que dizia: nunca desista. Agora está com oitenta e sete anos e a sensação de que finalmente as coisas vão começar a desenrolar, mas aí vem a morte e atrapalha tudo.

 

2 Caminhos possíveis

Há limite de idade para que uma pessoa possa se sentir orgulhosa. Depois o pudor impede e, por último, existe as alternativas: ou se vira um cínico ou se continua a acreditar em alguma coisa — em qualquer coisa — e aí não há remédio a não ser abraçar o seu quinhão de patético neste mundo.

 

3 Mergulho radical 

Passou a vida inteira à procura de si mesmo. Era o que dizia aos outros. Quando se deu conta de que na verdade tinha atravessado a vida toda a se esconder, das outras pessoas inclusive, mas sobretudo de si, percebeu que também era tarde para fazer qualquer coisa a respeito.

 

Uma hora acaba

Foto | Ralph Eugene Meaty
Foto | Ralph Eugene Meaty

 

 

E o fim do mundo, quando é que vem?, ele perguntou, de um jeito meio cínico mas também com aquela expressão de quem já se conformou com uma catástrofe certeira. Já veio e já foi, ela disse, com um tom de voz que parecia de tristeza abissal. E não disseram mais nada depois disso.

 

fábulas do nosso tempo

rolleiflex

 

 

tenho a exata noção da farsa que sou, mas também sei que ninguém percebe (ou, se percebe, não comenta comigo, mas com outros, ou mantém para si), então invisto no meu melhor sorriso e estufo o peito, animado como o sol na grama lá fora. la fontaine podia me usar como personagem de uma de suas fábulas, se quisesse. o problema é que se ele vivesse hoje, duvido que conseguiria variações além do tema do cinismo.

 

sarcasmo é analgésico

submarino

 

 

ele tinha se empenhado muito nos exercícios de sarcasmo. era uma coisa que lhe vinha naturalmente, merecia ser cultivada. sabia do risco de levar a questão longe demais. o sarcasmo fica na fronteira do cinismo e geralmente a polícia está cochilando e pouco atenta ao trânsito entre as localidades. quando vê, você está no país vizinho e nem se deu conta. acontece que o mundo não trata bem os medalhistas em sarcasmo e ele tinha esse lado deformado: gostava de agradar os outros, embora tivesse plena certeza de que não fazia a mais remota ideia a respeito do que as pessoas estavam pensando ou sentindo e, além disso, o sarcasmo tem por princípio não ligar a mínima para os demais, o que parecia portanto apontar para uma enorme contradição. às vezes sequer dominava bem os próprios sentimentos. intuía apenas: a vida era parecida com baratas perambulando sem rumo dentro de uma caixa de sapatos. tudo é sem sentido e o sarcasmo é ferramenta útil de distração, embora de efeitos tão corrosivos. então apertou de novo o gatilho que iniciava o processo. vamos ver no que isso vai dar, pensou.