Havia, houve uma faísca, um pedregulho que jurei que saiu do meu peito, uma alucinação desencontrada e sem destino certo, como os cigarros fumados e a nostalgia de vê-los num velho filme com músicos de jazz e copos e copos de bourbon que nunca me deram ressaca. A dor que sinto é falsa feito um poema que Pessoa não teve coragem de assinar e delegou a um outro. O hábito dos escritores deste tempo: transferir a crise. Rimbaud com o “eu é um outro”; Sartre com o “o inferno são os outros”; Pessoa com heterônimos; escritores de agora com vidas inventadas (o nome é autoficção). É um outro, não sei, a senhora deve estar enganada, pretendo dizer para a Morte quando ela vier me procurar. Toque aí no vizinho, vou sugerir. Que um outro possa ir no meu lugar, que viva minha vida delegada, as aventuras que não tenho coragem de enfrentar, os amores trepidantes que ferverão sangue alheio, os continentes que estou preguiçoso demais para começar a conhecer. A outra nostalgia que tinha era a de encarar os problemas e derrubá-los no soco. Mas contratei um assessor de imprensa, um agente literário, um consultor de imagem, um treinador personalizado, um técnico do viver que me ensine de novo a ter autonomia existencial. Os problemas planetários me atingem, mas só de raspão e desde que eu não precise mudar muitos canais. Houve um tempo em que me balançava num galho de árvore, mas agora tornei-me cinicamente pachorrento e desagradável. Só quem ainda tem fé na humanidade (um pobre coitado que nem me dá mais nos nervos porque parei de pensar a respeito dele e do assunto) crê que é possível reverter alguma coisa e se agita por isso. De onde eu vejo são apenas brumas e escuridão. Roubaram minha vida e nem reclamei, o traço, o resquício de saudade eu sufoquei. Achei que era uma faísca, um pedregulho a me escapar do peito. Mas era a brasa do cigarro de alguém que brilhou num sonho alheio.