sei que não é fácil

 

 

casamento é sucessão de minúcias, horas escorrendo a conta-gotas, programas de televisão partilhados silenciosamente, os objetos que somem pela casa, os barulhos dos jantares oferecidos e o silêncio da louça sendo limpa, à luz da cozinha. há uma ausência presente como um terceiro elemento entre eles.

essencialmente, um sabe do outro, a personalidade, crises de irritação, comentários inoportunos. casamento é eterno perdão das falhas alheias, somado ao perdão das próprias falhas — algo que todo mundo pratica. os segredos, no entanto, formulados em pensamento, esses se acumulam como decisões adiadas.

as conversas elípticas, porque um já sabe o que o outro. preenchem o vazio deixado. é confortável, mas bem triste. é seguro e por isso. na moldura, eles formam aquilo que se chama belo casal, mas a vida é outra coisa.

toda convivência é feita de vazios que não podem ser preenchidos e que são apenas isso mesmo, vazios. não me surpreendo nem um pouco quando ouço dizer que durante a briga um dos dois do casal matou o outro.

 

refeições

 

 

o calango poupou energia — ficou imóvel. o pequeno rosto erguido em direção ao ar, o sol se decompondo em partículas de calor e se espalhando pela superfície da pele rugosa. o calango esquenta o almoço do gavião, que a dois quilômetros dali localizou o ponto exato onde deve descer sobre o outro de modo a não dar tempo para reações.

um movimento da pequena cabeça — o tempo implacável — denunciou sua posição, ruiu o disfarce.